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A atual avenida Presidente Vargas, que dá acesso ao centro da cidade do Rio de Janeiro, foi aberta – rasgada – nos anos 1940, oficialmente inaugurada em 07 de setembro de 1944. Sua construção integrou uma das diversas ondas de reformas urbanas intensas que marcaram a história da cidade e desestruturaram completamente a vida de melhores de pessoas, além de terem descaracterizado a paisagem tradicional e destruído monumentos. Os governos sempre apresentaram estas reformas como uma necessidade imperiosa, imprescindível para o adequado desenvolvimento da cidade e do país do qual era, então, Capital Federal. Facilitar a locomoção, abrir espaço para prédios modernos capazes de abrigar comércio e negócios, melhorar o aspecto geral de uma cidade antiga e rebelde, limpá-la dos seus pobres e marginais, arejar e limpar o centro... variadas as justificativas – algumas mais válidas dos que outras – mas a cada vez, o mesmo desespero de milhares de pessoas despejadas e sem dinheiro para moradia, expulsas do centro para a periferia.

A cada reforma, o traçado e o aspecto amplo da cidade se alterava, com a derrubada de morros, apagamento de ruas, implosão de centenas de prédios, aterramentos diversos. Nem o principal núcleo de povoamento inicial da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro escapou: o morro do Castelo foi desmanchado nos anos 1920 e até hoje, 100 anos depois, o espaço a que deu lugar permanece subutilizado.

Prédios históricos foram destruídos nestas renovações urbanas, das quais as mais marcantes na primeira metade do século XX foram as realizadas por Pereira Passos, prefeito nomeado por Rodrigues Alves entre 1902 e 1906, e por Henrique Dodsworth, a frente da Capital entre 1937 e 1945, como interventor federal do então ditador Getúlio Vargas. Ambos contaram com amplo apoio e suporte do governo federal. O caso da igreja de São Pedro dos Clérigos, aqui mostrada em pleno processo de derrubada de prédios em seu entorno, demonstra de forma bastante eloquente o desrespeito do poder público diante da história do povo, dos seu locais sagrados, da força histórica dos mesmos: construída a partir da década de 1730, considerada singular em estilo por se afastar da influência lusa e incorporar o estilo italiano, traço raro na colônia americana portuguesa. Com uma planta circular e capela intrincada, mesclando rococó e barroco, a igreja foi um dos primeiros monumentos a ser tombado pelo antigo SPHAN (atual IPHAN), Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1937. Entalhada pelo notório Mestre Valentim, foi virtualmente “depenada” antes da derrubada, quando o mobiliário, as esquadrias, obras de arte e entalhes e peças avulsas foram retiradas para serem recolocadas na igreja quando fosse reconstruída (plano inicial). Mas isso jamais aconteceu e tais peças acabaram se espalhando por outras igrejas, museus e coleções privadas.

 

De início, pretendia-se injetar concreto sob a igreja e utilizar rolos para desloca-la para um ponto fora do alcance das obras (a igreja localizava-se na área da atual rua Miguel Couto). Concebida na Europa, a técnica originalmente utilizava aço para fabricação dos rolos, o que não poderia ser feito no contexto da escassez e preços elevados do material na época da Segunda Guerra. A alteração de material tornou todo o projeto instável e imprevisível, e o prefeito Dodsworth resolveu simplesmente “destombar” a Igreja de São Pedro dos Clérigos e botá-la abaixo.

Fundos da Igreja de São Pedro dos Clérigos. Tomada da esquina das ruas General Câmara com Ourives (atual Miguel Couto), 1943. Interior da Igreja, antes e depois de ser despojada dos seus adornos. Fundo Hélio de Brito.

 Leitura recomendada:

ALVIM, Sandra. Arquitetura Religiosa Colonial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, IPHAN, Pref. Da Cidade do Rio de Janeiro, 1999. Vol II, p. 261.

PEREIRA, André Luiz T. Notas Sobre o Patrimônio Artístico das Irmandades de São Pedro dos Clérigos. I Encontro de História da Arte, São Paulo, 2005.

 

O Rio de Janeiro teve sua paisagem urbana radicalmente alterada algumas vezes ao longo da sua história, passando por reformas planejadas pelo poder público que rasgaram ruas e construções, em especial na região central da cidade e ergueram novas construções e vias cada vez mais amplas. Centenas, milhares de pessoas despejadas, morros arrasados, aterros, tijolos de casas, igrejas e edifícios derrubados espalhados pelo centro marcaram alguns períodos da história da cidade. Quando Capital Federal, estas reformas carregavam consigo significados e objetivos políticos relacionados aos momentos em que ocorriam. Em tempos recentes, vimos viadutos indo ao chão uma total transformação nas vias de transporte público.

Nada escapa à sanha reformadora que, embora apresente melhorias e vantagens em relação ao estado anterior, inevitavelmente apagam parte da história da cidade, dos seus bens simbólicos e principalmente, deixam muitas pessoas desprovidas das suas casas. A imagem aqui publicada foi registrada em um período de intensas reformas na cidade. Você conhece este edifício? Vale uma dica: é uma igreja. Sabe qual foi seu destino?

 

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