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A história dos movimentos feministas vem sendo apresentada como um processo essencialmente ocidental (europeu e norte-americano) que se espalhou por outros países a medida em que transformações econômicas abriam o mercado de trabalho às mulheres e mudanças políticas ampliavam o escopo democrático. Contudo, esta visão fracassa de forma flagrante ao ignorar as diferentes formas de envolvimento das mulheres de várias etnias, idades, nacionalidades e credos nas discussões acerca das questões públicas em países da América Latina, África, Ásia _ muitos deles, ainda sob jugo colonial. Ao privilegiar processos políticos desenvolvidos na esfera das instituições liberais predominantes no Ocidente, a visão tradicional das origens do movimento de mulheres ignora as particularidades de extensas áreas do globo em que a arena pública se constituía de uma forma diferente.

Mesmo os países que contavam com um arcabouço jurídico-político correlato às democracias do Norte (a América Latina, por exemplo) e que testemunharam o nascimento de movimentos feministas “ocidentalizados” já na virada para o século XX viram tais iniciativas serem virtualmente apagadas das narrativas dominantes da história do movimento feminista.

A presente imagem tem relação com este apagamento sistemático do feminismo em regiões outras que não os países centrais. Você tem ideia de quem é a pessoa retratada e a situação vinculada à imagem?

 

Durante muito tempo, o discurso dominante acerca da origem dos direitos humanos apresentava-os exclusivamente relacionado aos processos políticos ocidentais (Europa e América do Norte) ocorridos a partir do século XVIII, que colocaram o indivíduo racional e seu livre arbítrio no centro da arena política e transformaram os princípios de igualdade entre estes indivíduos nos pilares da comunidade política. A partir daí, tais princípios teriam se espalhado para o restante do mundo, e os modelos políticos resultantes teriam sido igualmente transplantados para outros lugares ao longo das décadas e séculos seguintes. Em sua origem, os direitos humanos não teriam, a partir desta visão, qualquer relação com a história ou racionalidade dos povos não-ocidentais.

Contudo, nos últimos anos vários pesquisadores vêm contestando esta concepção, questionando as premissas histórico-geográficas e antropológico-filosóficas que baseiam o discurso dominante acerca dos direitos humanos. Alguns autores evidenciam a dimensão colonial da modernidade, revelando a lógica de poder e de exclusão que também fizeram parte da dinâmica que permeou a constituição dos direitos humanos, além de lançarem luz sobre as críticas mordazes dos ameríndios à forma de viver e fazer política dos invasores. 

A história dos movimentos feministas também vem sendo apresentada como um processo essencialmente ocidental (europeu e norte-americano) que se espalhou por outros países a medida em que transformações econômicas abriam o mercado de trabalho às mulheres e mudanças políticas ampliavam o escopo democrático. Contudo, esta visão fracassa de forma flagrante ao ignorar a participação das mulheres de várias etnias, idades, nacionalidades e credos nas discussões acerca das questões públicas em países da América Latina, África, Ásia _ muitos deles, ainda sob jugo colonial. Ao privilegiar processos políticos desenvolvidos na esfera das instituições liberais predominantes no Ocidente, a visão tradicional das origens do movimento de mulheres ignora as particularidades de extensas áreas do globo em que a arena pública se constituía de uma forma diferente.

Mesmo os países que contavam com um arcabouço jurídico-político correlato às democracias do Norte (a América Latina, por exemplo) e que testemunharam o nascimento de movimentos feministas “ocidentalizados” já na virada para o século XX viram tais iniciativas serem virtualmente apagadas das narrativas dominantes da história do movimento feminista. Talvez um dos maiores exemplos deste apagamento seja a participação das mulheres latino-americanas na Conferência de São Francisco em 1945, que ensejou a criação da Organização das Nações Unidas, através da Carta da ONU.

Somente quatro mulheres assinaram o texto mais importante da organização: a cientista e diplomata brasileira Bertha Lutz; Minerva Bernardino, da República Dominicana; Virginia Gildersleeve, dos EUA; e Wu Yi-fang, da China. E apenas duas delas defenderam, com unhas e dentes, a inclusão dos direitos das mulheres de forma explícita no documento: Bertha Lutz e Minerva Bernardino, aqui retratada em charge constante do fundo Federação Brasileira para o Progresso Feminino.

A Carta da ONU foi um dos primeiros tratados internacionais a explicitar em seu texto a necessidade de igualdade de direitos entre homens e mulheres. Ao contrário do que foi apresentado até recentemente, a inclusão da defesa da igualdade de gênero não resultou da atuação de delegadas ou assessoras norte-americanas ou europeias; ao contrário, tanto a delegada Virgínia Gildersleeve quanto as assessoras britânicas (a Conferência permitiu a participação de vários representantes nos fóruns de discussão, que não teriam contudo direito a voto e nem à assinatura da Carta final) opuseram-se a esta inclusão, alegando que era “desnecessária” e “vulgar”. Não cabe aqui discutir o que motivou um posicionamento que atualmente nos parece tão absurdo, mas podemos apontar que a necessidade de defesa desta igualdade tornou-se cada vez mais clara a medida que as relações internacionais e os meios de comunicação aproximaram diferentes nações, explicitando a diversidade cultural, social, política. Também logo ficou claro que as garantias jurídicas até então conquistadas eram apenas mais um passo no longo caminho para sociedades que efetivamente encaram os gêneros como tendo igual valor e mesmos direitos.

Bertha Lutz, cientista brasileira nascida em 1894, uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progreso Feminino – entidade que desempenhou papel crucial para a conquista do voto feminino em 1932 – foi delegada brasileira na Conferência, designada pelo então presidente Getúlio Vargas e munida especificamente da missão de discutir e defender os direitos das mulheres. Sua atuação e suas iniciativas marcariam para sempre a história da ONU e dos direitos das mulheres, a despeito do longo apagamento que sofreu durante décadas e apenas recentemente atenuado.

Caricaturas: BR_RJANRIO_Q0_ADM_EVE_CNF_DES_0001: Desenho de Minerva Bernardino, delegada da República Dominicana na Conferência de São Francisco em maio de 1945.

Fotografia: BR_RJANRIO_Q0_ADM_EVE_CNF_FOT_0010_d0007de0008: Bertha Lutz na Conferência de São Francisco, maio de 1945

Leituras:

de Vasconcellos, P. M. C., & de Oliveira, D. C. B.(2022) Bertha Lutz: articulação internacional do movimento feminista brasileiro e a participação na Conferência de São Francisco. ANAIS DA PRIMEIRA SEMANA DE DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA, 9.

Pitanguy, J. (2017). Os direitos humanos das mulheres. Fundo Brasil de Direitos Humanos, 1-3.

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