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No ano de 1992, foi deixada na portaria do Arquivo Nacional uma caixa de papelão que continha documentos e cujo portador não quis se identificar. Ele pediu que a caixa fosse entregue à então diretora, que ao abrir a caixa encontrou vários documentos, em ótimo estado de conservação, sobre treinamentos do Serviço Nacional de Informações (SNI) e informações a respeito de pessoas e entidades. Logo se percebeu que a documentação era de alguém que fez parte de algum serviço de informação, seja militar ou civil, e que estava a serviço do regime estabelecido no Brasil em 1964. Identificados os documentos surgiu a dúvida acerca de qual nome dar a tal conjunto documental. Informante do Regime Militar foi logo sugerido e acatado pelos técnicos que identificaram o acervo e, por sugestão dos mesmos, recebeu o código de identificação de fundo como X9. A escolha do código não foi aleatória, pois, no jargão policial, X9 significa espião, informante. Uma vez identificado e colocado em ordem cronológica, foi feito um instrumento de pesquisa provisório e desde então está aberto à pesquisa, sem nenhuma restrição de acesso. (Arquivo Nacional. História arquivística do fundo X9. SIAN)

 

Durante os anos em que o Brasil esteve mergulhado em um regime de exceção, a partir do golpe militar de 1964, o Estado brasileiro criou um estruturado sistema[1] de coleta e análise de informações e de execução da repressão para combater a subversão em nome da Segurança Nacional. O Sistema Nacional de Informações (SNI) era o órgão central dessa rede de informações e contrainformações e tinha como principal atribuição formular diretrizes para elaboração de estratégias, no âmbito da presidência da República, atuando dentro da sociedade e em todos os níveis da administração pública.

Um importante mecanismo utilizado pelos serviços de inteligência e repressão durante o período foi a vigilância e o controle cotidiano sobre a sociedade. O sistema repressivo recrutou atores políticos dispostos a colaborar com o governo militar formando uma verdadeira “comunidade de informações”[2]. Esses informantes ou fontes, como eram denominados, podiam ser militares ou civis (remunerado ou espontâneo, profissional ou amador[3]) que se infiltravam nos mais diversos locais para coletar o maior número possível de dados.

A propagando do regime reforçava cotidianamente o perigo da ameaça comunista e do inimigo interno pronto para atacar, e convidava o cidadão comum a participar dessa comunidade de informações, desconfiando de tudo e de todos e informando às autoridades. Além do cidadão comum, militares e civis que pertenciam formalmente ao sistema, funcionários e colaboradores de diferentes status e com diferentes atribuições fizeram parte dessa comunidade de informações.

[Serviço Federal de Informações e Contra-Informações (Brasil). Subseção de Operações]. Apostila “Vigilância”, sobre sistemas de vigilância. [Rio de Janeiro], [1956-1964]. BR RJANRIO X9.0.TAI.1/8

 

Parte desses agentes, fossem civis ou militares, recebiam diferentes graus de formação, por parte do Estado, para atuarem nos quadros da rede de informação e contrainformação. Foram organizados cursos preparatórios, como os ministrados pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO), pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) ou ainda pela Escola Nacional de Informações (ESNI), voltada inteiramente para a formação de analistas da informação em 1971.

Aspecto estratégico para o governo militar, a ação desses agentes consistia em vigiar e observar setores da sociedade, seja em seus próprios espaços ou infiltrados no movimento estudantil ou grupos de esquerda, produzindo informações sobre aqueles considerados uma ameaça à Segurança Nacional. Segundo professor Reginaldo Cerqueira Sousa, “o investimento na formação de agentes, militares e civis, para atuarem nos serviços de inteligência e de repressão política e na criação de uma estrutura repressiva com órgãos responsáveis pela vigilância, aprisionamento e combate às ações subversivas, caracterizou a Ditadura Militar. (...) exerceu papel preponderante para a máquina repressiva, a formação dos agentes da repressão e o processo de fabricação do informante. Figura recorrente entre os agentes do Estado, o informante serviu para descobrir e desmantelar focos de oposição e identificar indivíduos considerados subversivos pelo Estado.”[4]

 

Apostila “Noções sobre operações clandestinas”, tratando da organização, comunicações, segurança, meios de ação e obstáculos à ação clandestina. [Rio de Janeiro, GB]. Abril, 1960. BR RJANRIO X9.0.TAI.1/14

 

Os documentos aqui exibidos são fragmentos de apostilas elaboradas pelos órgãos de informação utilizados para preparar os agentes dessa rede de informações. No primeiro, trata da definição de vigilância, sua importância, objetivos e  os sistemas operacionais. Já o segundo, é um esquema explicando como realizar o método de vigilância móvel, à pé, onde seria necessário a participação de 3 agentes (A, B e C, conforme a figura), para cercar o vigiado por, pelo menos, dois lados. 

Importante fonte para quem estuda a formação e fabricação desses informantes pelo regime militar é o conjunto documental que integra o fundo arquivístico X9. Fundo de origem privada, foi doado ao Arquivo nacional de forma anônima em 1992 e guarda uma série de documentos relativos ao treinamento desses agentes por parte dos órgãos oficiais de informações no país, e ainda, às atividades profissionais desempenhadas pelos referidos agentes, abrangendo o período de 1946 a 1975. “A atmosfera de sigilo e, de certa forma, clandestinidade que envolve a entrada deste acervo na instituição reflete-se na documentação que o integra”[5].

São apostilas, normas, informes, estudos, publicações, relatórios sobre treinamentos dados pela Subseção de Operações (SSOP) do Serviço Federal de Informações e Contra-informações (SFICI) - órgão integrante do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e posteriormente do Serviço Nacional de Informações (SNI) -, informes e estudos produzidos por agente infiltrado em reuniões e assembleias de entidades civis contrárias ao governo militar, além de publicações, textos e cartas, provavelmente apreendidos e coletados no decorrer da tarefa de espionagem.

O fundo encontra-se totalmente organizado no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN), em duas séries: Treinamento de agente de Informação e Espionagem, que se divide ainda nas subséries: Atividades clandestinas e Atividades clandestinas no Partido Comunista do Brasil. Para consultar o Inventário da Coleção Informante do Regime Militar, clique aqui.

[1] Cabe lembrar que as origens da montagem do sistema de informações e a preparação dos seus agentes é anterior à 1964. Segundo Samantha Viz Quadrat, o primeiro órgão com essa função no país foi o Serviço Federal de Informações e Contrainformações (SFICI), criado ainda em 1958 e subordinado à Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional.

[2] MAGALHÃES, 1997.

[3] Idem.

[4] SOUZA, Reginaldo Cerqueira. Ditadura Militar Brasileira: o aparelhamento do sistema repressivo e a fabricação do informante. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 19, n. 3, set/dez. 2019.

[5] ARQUIVO NACIONAL. Inventário da Coleção Informante do Regime Militar. Rio de Janeiro, 2008

 

Saiba mais:

MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A lógica da suspeição: sobre os aparelhos repressivos à época da ditadura militar no Brasil. Rev. Bras. Hist. 17 (34), 1997.

QUADRAT, Samantha Viz. A preparação dos agentes de informação e a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Varia História. Belo Horizonte, vol. 28, nº 47, jan/jun 2012.

SOUZA, Reginaldo Cerqueira. Ditadura Militar Brasileira: o aparelhamento do sistema repressivo e a fabricação do informante. História Debates e Tendências. Passo Fundo, v. 19, n. 3, set/dez. 2019.

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