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Estigma, exclusão social e privações: a hanseníase no Brasil

A hanseníase é uma doença que ataca principalmente a pele e os nervos periféricos e é causada pelo bacilo Mycobacterium leprae, também conhecido como bacilo de Hansen. Silenciosa, suas primeiras manifestações podem ocorrer até sete anos após a infecção e incluem o aparecimento de manchas esbranquiçadas na pele e perda de sensibilidade ao calor, ao frio, ao tato e à dor nos locais afetados. Conforme a doença avança sem ser detectada e tratada, reações podem ser desencadeadas nos olhos, rins e outros órgãos do corpo, havendo chances de surgirem sequelas físicas. Segundo o Guia para Controle da Hanseníase, elaborado pelo Ministério da Saúde, “o contágio dá-se através de uma pessoa doente, portadora do bacilo de Hansen, não tratada, que o elimina para o meio exterior, contagiando pessoas susceptíveis” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 12).

De acordo com o Boletim Epidemiológico de Hanseníase, do Ministério da Saúde (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020, p. 9), “a hanseníase é uma doença infecciosa, transmissível e de caráter crônico, que ainda persiste como problema de saúde pública no Brasil”. O boletim informa também que, em 2018, foram notificados 28.660 novos casos no Brasil, correspondendo a 92,6% do total das Américas, dado que classifica o Brasil “como um país de alta carga para a doença, ocupando o segundo lugar na relação de países com maior número de casos no mundo, estando atrás apenas da Índia” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020, p. 9).

No Brasil, apesar da mudança terminológica conquistada por profissionais de saúde e pacientes, a hanseníase permanece conhecida por expressões depreciativas como lepra ou morfeia. Trata-se de uma enfermidade marcada por preconceitos e pelo medo de contágio, mesmo hoje quando já existem tratamento e cura. O afastamento social imposto, durante séculos, aos portadores da doença fraturou laços familiares, de amizade e de vizinhança, inclusive afetando a socialização de crianças, percentual relevante do total de infectados. Não raras vezes impediu a inserção dos doentes no mercado de trabalho, comprometendo drasticamente suas oportunidades de acesso à renda, além de ter se mostrado ineficaz, visto que a incidência da doença no país não arrefeceu com as internações compulsórias. O forte preconceito existente em torno da hanseníase estimula também que o indivíduo, uma vez diagnosticado, experimente profundo sentimento de rejeição a si próprio, o que intensifica seu sofrimento. O medo de contaminar outras pessoas, ser identificado como portador de hanseníase, desenvolver algum tipo de deformidade física e ficar incapacitado para desempenhar atividades domésticas e laborais, associado a uma desinformação sobre a doença presente ainda hoje completam o cenário em que se encontra o paciente.

A exemplo do que acontece com a doença de Chagas, tema já tratado na nossa série Especial Saúde, a hanseníase é considerada pela Organização Mundial da Saúde como uma doença negligenciada. Acomete principalmente populações empobrecidas de países de economia periférica e sua ocorrência foi alvo, durante décadas, de políticas públicas que priorizaram o afastamento social. No Brasil, essa abordagem no trato da doença pode ser exemplificada pelo documento fotográfico abaixo sobre a  Colônia Estadual Curupaiti, hospital colônia localizado no bairro de Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro, criado em 1928 para abrigar portadores de hanseníase (SANTOS, 2003. p. 423). A legenda no verso da fotografia que integrava os arquivos do Jornal Correio da Manhã, hoje recolhidos ao Arquivo Nacional,  denomina o lugar de “Cemitério de Vivos” e informa que são “900 ofendidos pelo descaso e horror de todos”, salientando a triste situação dos doentes, muitos dos quais internados e abandonados por suas famílias em idade bem jovem.

A dificuldade de obtenção de diagnóstico é exemplificada na matéria do Jornal do Morhan – Órgão de Divulgação do Movimento de Reintegração do Hanseniano, datado de dezembro de 1985, anexado ao Arquivo Cronológico de Entrada (ACE) do Serviço Nacional de Informações (SNI). Essa que o documento aponta é apenas uma das adversidades que enfrentam os indivíduos infectados, a qual tem sido um grande obstáculo para o tratamento precoce da doença. O Jornal do Morhan possui inúmeras outras pistas para despertar reflexões sobre a ocorrência da doença no Brasil: preparo de profissionais de saúde para reconhecer as primeiras manifestações da doença; dificuldades de inserção no mercado de trabalho; condições indignas de vida nas colônias; destino dos doentes no caso de encerramento das atividades das colônias; concessão de pensão por parte do Estado aos pacientes de hanseníase; acesso a tratamentos médicos interdisciplinares; ocorrência da doença entre a população privada de liberdade; inclusão dos doentes nos debates sobre as políticas públicas de combate e tratamento da hanseníase.

 De acordo com Baialardi (2007, p. 28), a partir do início dos anos 1940 o desenvolvimento de novos medicamentos alterou as políticas públicas para tratamento da doença que até aquele momento eram pautadas na segregação do paciente. Acrescenta que desde a década de 1950 o tratamento da hanseníase é ambulatorial (2007, p. 28),  entretanto a forma como os pacientes são percebidos pela sociedade pouco mudou. A preocupação com o contágio e, principalmente, com o desenvolvimento das temidas deformidades físicas justificou o abandono dos doentes durante séculos e mesmo hoje, quando já existem tratamento e cura para a doença, ainda influencia comportamentos.  Para Baialardi (2007, p. 28),

O estigma e o preconceito associados à doença ameaçadora e fatal do passado permanecem no imaginário da sociedade remetendo os indivíduos ao tabu da morte e mutilação, trazendo grande sofrimento psíquico aos seus portadores com sérias repercussões em sua vida pessoal e profissional.

Cercada por desinformação e preconceito, em pleno século XXI, a hanseníase é alvo da campanha Janeiro Roxo, promovida pela Sociedade Brasileira de Dermatologia, com o objetivo de conscientizar, prevenir e incentivar o tratamento precoce da doença.

 

Documentos (em ordem):

Vila de casas da Colônia Estadual Curupaiti. Fotógrafo Jorge Nicolella. Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1972. Fundo Correio da Manhã. BR RJANRIO PH 0 FOT 06635 004.

Jornal do MORHAN – Movimento de Reintegração do Hanseniano. Ano IV, n. 9, São Bernardo do Campo, São Paulo, dezembro de 1995, anexo ao Arquivo Cronológico de Entrada 017573/86 do Serviço Nacional de Informações, janeiro de 1986. Fundo Serviço Nacional de Informações. BR DFANBSB V8 MIC GNC EEE 86017573 d0001de0001. [TAMBÉM IMAGEM DE ABERTURA]

 

Referências

BAIALARDI, Katia Salomão. O estigma da hanseníase: relato de uma experiência em grupo com pessoas portadoras. Hansenologia Internationalis: hanseníase e outras doenças infecciosas, Bauru, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 27-36, 2007. Disponível em: http://hi.ilsl.br/index.php. Acesso em: 18 jan. 2021.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico de Hanseníase. Brasília: Ministério da Saúde, 2020. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/pub/2020/boletim-epidemiologico-de-hanseniase-2020.  Acesso em: 18 jan. 2021.

BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia para controle da Hanseníase. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_de_hanseniase.pdf. Acesso em: 18 jan. 2021.

SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Pesquisa documental sobre a história da hanseníase no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 10, supl. 1, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-597020030004&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 18 jan. 2021.

 

 

 

 

 

 

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