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Os eventos públicos que marcam as vidas dos grupos humanos que os vivenciaram deixam rastros e memórias que perduram ao longo do tempo. Contudo, tais rastros cristalizam-se em memórias que variam não apenas de acordo com a identidade social de cada um, mas também ao longo do tempo. Desta forma, a carga simbólica de determinado evento pode ser diferente para uma mulher ou para um homem, para um/a operária/o ou um homem público, para a pessoa que viveu 50 anos ou 200 anos depois. Trata-se de uma memória social, construída e vivenciada no tempo e no espaço, de forma mais ou menos deliberada.

A independência política forma do Brasil em relação a sua antiga metrópole, Portugal, não foi um processo simples, rápido e sem traumas ou polêmicas. Houve embates ideológicos e bélicos intensos ao longo de toda a década de 1820, em que brasileiros enfrentaram portugueses, mas também brasileiros enfrentaram-se entre si, em defesa de concepções diferentes da gestão do novo estado.

Possivelmente o movimento mais emblemático do período tenha sido a (Con)federação do Equador, que varreu parte do nordeste brasileiro entre janeiro de 1824 e agosto do mesmo ano, especialmente em Pernambuco e Ceará. Desencadeada em reação a dissolução da Assembleia Nacional Constituinte por d. Pedro I, ela ganhou feições republicanas, e inspirou e assustou muitos grupos Brasil afora. Ao longo do tempo (e dos lugares), a narração do episódio, interpretações e avaliações do levante, a imagem dos revolucionários iria mudar, de acordo com o contexto político local e nacional.

A começar pelo nome: o termo Federação chegou a ser bastante utilizado pelos órgãos de imprensa da época e ao longo dos anos seguintes que desejavam dar uma conotação mais republicana e menos separatista (o que os “confederados” nunca de fato foram) à revolta. No entanto, a hegemonia imperial relegou aos republicanos de Pernambuco e Ceará a alcunha de “separatistas,” como se d.Pedro I houvesse “inventado” uma nação, contra a qual agiriam aqueles que se lhe opunham.

O Estado brasileiro levou anos para se constituir de fato, e a nação brasileira é uma construção permanente. Chamar “separatistas” grupos que se opunham a forma com que d.Pedro desejava governar todo o território da antiga colônia portuguesa a partir da sua Corte instalada no Rio de Janeiro soa mais como estratégia de esvaziar simbolicamente sua oposição, já que em 1824 seria muito precoce afirmar havia, de fato, um Estado-nação consolidado aqui.

Os combatentes e líderes maiores da revolta foram presos, exilados, assassinados ou condenados a morte. Alguns voltariam à vida pública depois da saída de d. Pedro I do Brasil em 1831. A imagem destes líderes, heróis e mártires para uns, vilões e traidores para outros, passou por alguns processos de reconstrução, assim como o próprio movimento. Durante a primeira metade do segundo império, por exemplo, alguns movimentos anteriormente considerados “separatistas” e “republicanos” (até mesmo a Conjuração Mineira de 1789) veriam ambos os aspectos serem esvaziados por alguns intelectuais orgânicos do Estado, embora este esvaziamento não tenha ocorrido de fato com a Confederação do Equador.

A instauração da República trouxe uma nova onda de revisitação e glória póstuma aos heróis pioneiros do republicanismo nacional. Tiradentes ganhou o status de mártir maior da nação brasileira, o que aliás foi contestado regionalmente por historiadores e políticos que defendiam para seu estado a primazia do sacrifício republicano.

Especificamente em grande parte do Ceará, os heróis da Confederação, em especial Tristão Alencar “Araripe” e o padre Gonçalo Inácio de Loyola Albuquerque “Mororó” passaram a representar a ousadia e o pioneirismo do sentimento nacional e republicano, sufocado pelo autoritarismo monárquico que demoraria ainda décadas para ceder. Quando do centenário do movimento, em 1924, as celebrações e inaugurações de marcos comemorativos (monumentos, mudança de nomes de ruas e praças) chegaram a igualar (ou, segundo alguns autores, superar) os festejos pelo centenário da Independência dois anos antes.

As comemorações de eventos cívicos, uma característica tipicamente moderna da vida pública, constituem-se um momento em que o imaginário político constitui-se, transforma-se, ou apaga-se. Em uma ambiente de afirmação de um modelo republicano descentralizado, federativo, como o era a primeira República brasileira, um movimento precursor das ideias republicanas e constitucionais ocorrido no nordeste prestou-se com eficiência para a elaboração de mitos regionais que reforçassem o engajamento do modelo então vigente. As páginas exibidas na presente matéria foram encontradas dentro de um pacote da série Guerra, perdidos entre documentação do século anterior sobre a Confederação do Equador no Ceará. Mostram duas matérias sobre heróis do movimento, no ano do seu centenário ou pouco antes.

Recomendações de leitura

Fonseca, S. (2014). História e Memória: os relatos da Confederação do Equador (1824-1924). Revista Maracanan, 3(3), 31-56. Recuperado de https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/13621/10422

Valente, P. G. G. (2014). Memórias da política, políticas da memória: o centenário da Confederação Do Equador no Ceará (1924). Dissertação de Mestrado, História Social (Universidade Federal do Ceará)

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