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Portugal, outrora grande Império ultramarino com possessões em quase todos os continentes, no cenário do colonialismo europeu na África e Ásia possuía muito pouco poder de fato e quase nenhum peso econômico ou geopolítico a partir do século XIX. Suas colônias, submetidas formal e politicamente, apresentavam fluxo de comércio mais intenso com as potências europeias e, a partir do século XX, tinham sua economia dominada por subsidiárias europeias e norte-americanas. Nos anos 1970 um jornalista brasileiro visitando Angola, que então passava pelo seu processo de libertação, comentava que a colônia apresentava uma economia dominada por empresas estrangeiras, muito mais do que portuguesas: exploração de petróleo por americanos e belgas, indústria alimentícia italiana e inglesa, extração de minério de ferro realizada por empresas americanas e alemãs. Última nação europeia e perder seus territórios coloniais, Portugal recusou-se a negociar quase até o último minuto, pagando um preço elevado pela sua obstinação.

Precedida por uma ditadura de caráter militar (1926-1933), o Estado Novo português liderado por Antônio de Oliveira Salazar mergulhou a antiga metrópole brasileira em um longo período governado por um Estado obscurantista, autocrático, autoritário, colonialista, corporativista e de discurso profundamente moralista. Salazar esteve a frente deste Estado a partir de 1932 e até sua morte em 1968, fazendo da ditadura portuguesa uma das mais longevas do século XX. 

Em 1930, Salazar _ então Ministro das Finanças _ edita o Acto Colonial, marcado por um nacionalismo centralizador e uma tentativa de reorganizar e fortalecer o domínio português nas suas colônias restantes na Ásia e África. Anacrônico, baseando-se em supostos deveres e sucessos históricos de Portugal, impondo uma diferenciação racial que, se não acarretava escravidão certamente criava formas de trabalho próximas a servidão, o Acto vigorou até 1951, quando foi derrubado em consequência de pressões internacionais.

Se sua neutralidade manteve Portugal em relativa segurança durante a Segunda Guerra (preservando inclusive seus domínios coloniais), depois do fim do conflito tornou-se motivo de desconfiança para a comunidade internacional, pouco tolerante diante de um regime fascista semelhante àqueles que haviam sido derrotados no conflito. A entrada do país na recém-criada ONU (Organização das Nações Unidas) foi dificultada pela existência da ditadura salazarista, e nesse cenário as relações com o Brasil, nação bem-quista e fundadora da nova organização multilateral, tornaram-se fundamentais para a aceitação de Portugal, bem como algumas modificações no sistema colonial (o já citado fim do Acto de 1930).

Nos anos após a guerra as nações europeias  perderam suas últimas possessões coloniais. Libertaram-se: Indonésia (1946), Índia e Ceilão (1947), a Birmânia (1948), a China (1949) além de outros países asiáticos, árabes e africanos. Os processos de independência foram violentos e causaram surgimento de vários estados, que muitas vezes acabaram se alinhando a uma das duas superpotências da época (EUA ou União Soviética), resultando em alguns estados comunistas ou socialistas, e outros não-alinhados. Para Portugal, última metrópole europeia, as perdas começariam na África nos anos 1960.

Recusando-se a abrir mão das suas possessões, o governo salazarista “concede” a cidadania a todos os integrantes do império português, supostamente transformando suas colônias em províncias com o mesmo estatuto daquelas localizadas no continente europeu. Mas as aspirações dos povos africanos vão muito além, surgindo o chamado pan-africanismo: o desejo de constituir Estados e nações autônomos e donos do próprio destino. Salazar morre em 1968 e seu sucessor, Marcelo Caetano, tenta manter vivo o salazarismo, a despeito de algumas (e insuficientes) mudanças. O regime cai em abril de 1974, com a Revolução dos Cravos.

O prolongamento das guerras de independência desgastou Portugal política e economicamente. No cenário internacional um dos seus poucos aliados era o Brasil _ e, mesmo, assim, relutante em muitos momentos. Para o Brasil, o apoio a Portugal e a uma saída “negociada” representava uma corda bamba diplomática, uma corda que começou a ceder nos anos 1960 com a determinação do Itamaraty em diversificar e ampliar os parceiros comerciais brasileiros, deixando de lado ideologias (até certo ponto) e amizades com pouco retorno prático. As relações Brasil-Portugal paulatinamente iriam se enquadrar no pragmatismo que em geral marcava a diplomacia brasileira, gerando um impasse a partir da queda de Salazar. Segundo Carvalho “Em Portugal, o marcelismo mostrava-se incapaz de pôr termo à guerra colonial e de empreender a efetiva liberalização política e económica, ficando sem alternativas no plano externo para contrariar o crescente isolamento internacional e o fim do alinhamento automático brasileiro. Por sua vez, a distensão da ordem bipolar permitiu ao Brasil implementar uma política externa mais autónoma e flexível, livre dos alinhamentos rígidos da Guerra Fria e que tinha por finalidade concorrer para o êxito do projeto nacional-desenvolvimenitsta. Essa nova orientação implicava na revisão das alianças tradicionais e atribuía prioridade às relações com o continente africano, tornando inconciliável a defesa do ultramar português.”

Mesmo após a Revolução dos Cravos Portugal permanece incapaz de encaminhar uma solução prática para a questão colonial, em seus estertores. O governo brasileiro _ uma ditadura militar que via com desconfiança a tendência cada vez mais esquerdista do novo governo português _ impaciente, resolve começar a implementar sua nova política externa para a África em julho de 1974, reconhecendo a independência de Guiné-Bissau antes mesmo da ONU. O objetivo do Itamaraty era demonstrar uma iniciativa política que distanciasse o Brasil do seu passado de apoio ao Portugal colonialista, sinalizando ao continente africano e à comunidade internacional que apoiava os movimentos de libertação.

Esta postura amadureceria nos meses seguintes. Em novembro de 1975 (momento em que as relações entre Brasil e Portugal encontravam-se estagnadas por causa da crescente radicalização à esquerda do governo português) o governo do general Ernesto Geisel foi o primeiro a reconhecer a MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) como governo legítimo do novo estado angolano, a despeito da identificação e aproximação da agremiação com países do bloco socialista. A atitude demonstrou independência e autonomia tanto em relação a Lisboa quanto à lógica bipolar Washington-Moscou, e permitiu que o Brasil finalmente ganhasse credibilidade diante de outros movimentos de libertação, em especial a FRELIMO _ Frente de Libertação de Moçambique. A estratégia implementada pelo Brasil buscava conseguir primazia nas relações comerciais com as novas nações, o que acabou por se mostrar uma aposta certeira, embora nem sempre bem explorada nas décadas seguintes.

Em 1976 a democracia estabiliza-se em Portugal (com o domínio do socialismo moderado) e uma leve distensão da ditadura militar no Brasil favorecem a reaproximação entre os dois países. Em dezembro de 1976 um encontro bilateral em Brasília ocorreu com resultados eminentemente políticos, posto que consolidou a confiança entre as duas chancelarias, o que se refletiu positivamente na opinião pública portuguesa e brasileira, iniciando uma etapa em que as relações bilaterais poderiam ocorrer com poucos (ou nenhum) obstáculos ideológicos.

 

 

 

br_dfanbsb_z4_rex_ips_0059_d0001de0001 Relatórios e análises sobre os movimentos pan-africanos, a luta anti-colonial na África e a política ultramarina de Portugal. Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores 

br_dfanbsb_n8_0_psn_est_0209_d0001de0001 Recortes de jornais sobre o governo socialista português (1975-76), ofícios e convites envolvendo negociações para uma visita oficial de representantes do governo português ao Brasil; análises e estudos sobre as relações entre os dois países; dados sobre o Primeiro Ministro português Mário Soares e outros. Conselho de Segurança Nacional.

br_dfanbsb_z4_dpn_bra_bex_0003_d0001de0001 Telegramas dando conta da guerra em Angola; ofícios secretos sobre o conflito, com informes da Representação Diplomática Especial do Brasil na capital Luanda, inclusive sobre o apoio dado a população civil em 1975.  Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores                   

       

Leitura recomendada

 

Carvalho, T. (2012). Transição e descolonização. As relações entre Portugal e o Brasil (1974-1976). Ler História, (63), 127-141.

 

GUILLEN, A. R. M. (2007). A DESCOLONIZAÇÃO DA ÁFRICA E O LUSO-TROPICALISMO: REPERCUSSÕES NO BRASIL E EM PORTUGAL. Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia.           

       

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