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Estrangeiros indesejáveis na Primeira República

Alexandre Samis
Doutor em história e professor do colégio Pedro II
 

Ainda muito antes da República proclamada, nos primeiros meses da nação independente, os governantes do Brasil já publicavam leis prevendo a expulsão de estrangeiros julgados perigosos. O “direito à deportação”, independentemente de processo e condenação judiciária, impunha-se como medida a ser utilizada pelas autoridades do país na Portaria de 6 de novembro de 1822, estendendo-se através de reiteradas versões até o decreto nº 528, de 28 de julho de 1890, editado pelo Governo Provisório da República. Contra tais medidas, pouco podia o remédio jurídico do habeas-corpus, ainda que este fosse praticamente o único recurso para impedir a deportação sumária do estrangeiro.

Mesmo após a medida conhecida como “grande naturalização”, de 14 de dezembro de 1889, na qual os estrangeiros residentes no país convertiam-se em nacionais, salvo manifestação explícita em contrário, a entrada de estrangeiros se manteve em cifras razoáveis, como atesta a historiadora Lená de Menezes. Em 1906, eles representavam 25% da população do Rio de Janeiro, apresentando clara tendência de crescimento.

Por essa época, o mito do “imigrante radical”, o da “planta exótica”, em oposição ao operoso trabalhador nacional, populariza-se como tese, viceja nos discursos oficiais e no da grande imprensa. Com ele, como seu corolário, acompanham-no as etiquetas de “petroleiro”, “revolucionário” e, principalmente, “anarquista”.

As deportações foram largamente utilizadas na República. Elas não serviram apenas para expulsar para fora do território nacional, mas para partes longínquas, desabitadas e limítrofes com outros países. O chamado “desterro” foi mais que comum, valendo-se dele o governo em episódios como no das manifestações de rua em maio de 1892, na Revolta da Vacina em 1904, e na Chibata em 1910. Isso para citar apenas os mais célebres.

Os atentados anarquistas e a imagem do malfeitor.

Em 1890, já era possível encontrar na grande imprensa do Distrito Federal notícias sobre a presença de anarquistas no Brasil, quer pela conduta, quer pela filiação ao ideal propriamente dita. O noticiário internacional do Jornal do Commercio tratava, nesse ano, das comemorações do 1º de maio em Paris, destacando as performances violentas dos anarquistas. Seriam eles, ainda, exímios “fabricantes de máquinas explosivas” e contumazes infratores da lei.

Nas notícias do Brasil, o mesmo jornal noticiava que, em dezembro de 1892, o chefe de polícia do DF consignou queixas em documento ao Ministro da Justiça, nas quais denunciava a presença de estrangeiros anarquistas, segundo a autoridade, “ardentes discípulos” de um “feroz e sanguinário” criminoso francês de nome Ravachol. Os implicados eram espanhóis, italianos, franceses, incluindo ainda um canadense, todos detidos por discursos proferidos no Centro do Partido Operário. O chefe de polícia pedia ao ministro que fossem dadas, sem demora, ordens para a “deportação dos estrangeiros”. Nesse ano, os processos contra anarquistas se avolumaram.

No plano internacional, a repressão ao movimento anarquista crescia substancialmente. No fim do ano de 1898, parte do governo da Itália a ideia da “Conferência Internacional Anti-Anarquista”. Os idealizadores do evento pretendiam formar uma central supranacional para investigar a conduta de anarquistas, com critérios em comum e troca periódica de informações sobre as atividades dos suspeitos. Previam, ainda, a identificação dos suspeitos por “retratos falados”, que deveriam ser igualmente enviados aos diretamente responsáveis pela vigilância das atividades anarquistas.

Atravessada a fronteira do século XIX, em 1903, como forma de conter o número crescente de greves, o governo empreendeu considerável esforço no sentido de erradicar do corpo social da capital da República os estrangeiros “indesejáveis”. Nesse contexto, o delito de “vadiagem” passaria a associar-se ao de anarquismo. Uma estratégia que, no que se refere à perseguição aos operários grevistas, mostrava-se mais que eficiente.  No caso do Rio de Janeiro, tal política resultaria na deportação de muitos portugueses, italianos, franceses e espanhóis,todos acusados de vadiagem e condenados pelo artigo 399 do Código Penal da República.

Na malha pacientemente tecida pela justiça para enredar os anarquistas, outras tantas razões poderiam servir ao reiterado propósito da deportação. Mesmo uma simples denúncia, uma suspeita, a delação de um indivíduo ou suposto plano para desestabilizar a ordem, já eram suficientes para a composição de um dossiê, de um processo. Em setembro de 1903, por exemplo, a italiana Cesira Panichi, denunciava os também italianos: Augusto Mercanti, Giuseppe Succhesi, Giuseppe Palmiere e Grazio Giardine por estarem envolvidos em uma trama “contra a vida dos reis da Itália”. No corpo do processo, a denunciante afirma que “correligionários da Seita Negra” deveriam colaborar com o intento, ainda que radicados em Paris e Londres.

Em 6 de dezembro de 1900, o ministro da Justiça e Negócios Interiores enviava ofício ao chefe de polícia do Distrito Federal informando da expulsão do território suíço, “por ser anarquista”, do italiano Alfredo Alsergio Tiume, natural de Cantaria, Turim. Meses antes, um aviso com teor semelhante chegara às mãos do chefe de polícia, enviado pela mesma autoridade ministerial, insistindo na necessidade de vigiar os portos brasileiros para que se evitasse o desembarque dos também italianos Leopoldo Cellati e Pietro Erasmo Vicenzi, segundo o documento: “expulsos da Suíça como perigosos”.

O cerco aos anarquistas não se restringia aos processos internos e vigilância dos portos europeus. Dentro do próprio continente, a rede de informações encontrava-se ativa; autoridades argentinas e uruguaias, por exemplo, mantinham o canal de comunicação com o Brasil permanentemente aberto. O caso de dois anarquistas italianos vindos da Argentina serve de esclarecedor exemplo. Em 1903, a segurança portuária do Rio de Janeiro informava à Secretaria de Polícia do Distrito Federal: “Comunico-vos que os dois anarquistas deportados pelo governo argentino, e que deveriam passar hoje pelo nosso porto, a bordo do paquete inglês ‘Magdalena’, desembarcaram em Montevidéu”. Os dois anarquistas eram Oreste Ristori e Felix Basterra, este último responsável pelo periódico portenho La Protesta Humana, ambos enquadrados na Ley de Residencia e deportados como indesejáveis. O chefe de polícia de Buenos Aires, em 17 de janeiro, antes da chegada em Montevidéu de Ristori e Basterra, envia um telegrama, a propósito da deportação, ao seu colega do Rio de Janeiro para o conhecimento do fato: “a fim de conveniente impedimento, do desembarque nesta capital”.

A organização legislativa e jurídica da repressão ao anarquismo

Em janeiro de 1907, no ano seguinte ao Primeiro Congresso Operário, o decreto nº 1.641 reitera a medida de deportação de estrangeiros indesejáveis, já tratada em código no ano de 1894. O referido decreto entrava em vigor alcunhado pelo nome do parlamentar paulista identificado com a sua aprovação, “Lei Adolfo Gordo”.

Em 1913, a segunda edição da lei de expulsão traria ainda mais problemas aos anarquistas. O decreto nº 2.471, de 8 de janeiro de 1913, revogava os artigos 3º, 4º, pará­grafo único e 8º, do decreto de 7 de janeiro de 1907. Os jornais libertários e operários, em campanha cerrada contra retaliações ainda maiores impostas pelo governo do Marechal Hermes da Fonseca, reiniciaram, no exterior, por meio de seus sindicatos e associações, um movimento de contrapropaganda à emigração para o Brasil. Diante de tantas experiências amargas, o anarquista Gigi Damiani, ele mesmo um deportado, publicaria na Itália o livro: I paesi nei quali non si deve emigrare: la questione sociale nel Brasile (Os países para os quais não se deve emigrar: a questão social no Brasil). No território nacional, o jornal La Battaglia fazia pregação semelhante ao denunciar as agruras sofridas por imigrantes, sobretudo italianos, no interior do estado de São Paulo e nas fábricas da capital. Uma brochura intitulada: “Contra a Imigração”, datada de 1906, feita circular pela urbe paulistana, não deixava dúvidas sobre os enormes constrangimentos provocados pelas autoridades brasileiras aos imigrantes. Os anarquistas patrocinaram tal publicação sem custo nenhum para os interessados.    

Seguindo a lógica da repressão, o historiador Pedro Tórtima destaca um importante evento acontecido no mês de maio de 1917.  Nas dependências da Biblioteca Nacional, realizou-se a Conferência Judiciário-Policial, que reuniu autoridades de segurança, algumas das quais, de fora do país. O encontro de especialistas em criminologia não negligenciaria a questão operária e anarquista. Oportunizada em grande medida pelos esforços do chefe de polícia, o baiano Aurelino Leal, o evento marcou e potencializou de forma significativa a normatização de procedimentos entre agentes policiais e de segurança para além das fronteiras do país. Isso em uma conjuntura de greves e motins urbanos, dos quais acreditamos merecer destaque a “Insurreição Anarquista”, de 18 de novembro de 1918, exaustivamente estudada pelo historiador Carlos Addor.

Em função da permanente agitação operária, das greves gerais e da propaganda animada pela Revolução Russa, as leis anteriores receberiam novo reforço e atualizações em 1919. Uma atualização que não eliminou a vigência da lei de 1907. Nesse contexto, os jornais operários e anarquistas do Rio de Janeiro e São Paulo não cansam de denunciar a escalda das arbitrariedades. Dois anos depois, o decreto nº 4.269, de 17 de janeiro de 1921, não dava margem a interpretações sobre o seu principal alvo ao deixar claro no seu subtítulo que vinha para regular: “a Repressão do Anarquismo”. A lei complementava, no tocante aos ativistas estrangeiros no Brasil, o decreto nº 4.247, de 06 de janeiro de 1921, que normatizava a entrada de estrangeiros no Brasil, prevendo a manutenção das deportações.

Em novembro de 1922, o governo cria a 4ª Delegacia Auxiliar, especializada em investigar os grupos de oposição política ao regime. Esta repartição policial será responsável por um sem-número de deportações. Quase todos os anarquistas expulsos do território nacional, ou para outras partes dele, passaram antes pelas suas celas. Com a chegada de Arthur Bernardes ao poder (1922-1926) e a nomeação, para chefe de polícia, do Mal. Carneiro da Fontoura, as atividades dessa delegacia assumem função estratégica para a manutenção da ordem. Os anarquistas foram deportados em lotes, em grupos, principalmente entre 1924 e 1926. Os estrangeiros eram repatriados, enviados, quase sempre, para seus países de origem. Os nacionais remetidos para áreas inóspitas, para o degredo, como foi o caso da Colônia de Clevelândia, no Amapá. Em todos os casos, os depoimentos revelam verdadeiras tragédias.

No governo seguinte, após uma curtíssima trégua, é editada a chamada “Lei Celerada”, ou “Aníbal de Toledo”, Decreto nº 5.221, de agosto de 1927.  A medida previa o fechamento, por tempo determinado, de “agremiações, sindicatos, centros ou sociedades que incidam na prática de crimes” previstos na lei ou de “atos contrários à ordem, moralidade e segurança públicas”, isso para entidades que operassem no “estrangeiro ou no País”, vedando-lhes, quando necessário, a propaganda e impedindo a distribuição de “escritos ou suspendendo os órgãos de publicidade”. Sob a sombra dessa lei, muito apropriada para o combate ao PCB, foram ainda deportados muitos anarquistas.      

Sugestões bibliográficas

Legenda das imagens:

1. Autos para processo de deportação do espanhol Thomaz Pacheco, do português Olympio Lagôa e do italiano Menotti Garibaldi. Rio de Janeiro, novembro de 1903. Fundo Polícia - GIFI. BR RJANRIO OI 6C 121;

2. Processo de deportação de italianos acusados de montarem uma trama cotra a vida dos reis da Itália. Rio de Janeiro, setembro de 1903. Fundo Polícia - GIFI. BR RJANRIO OI 6C 120;

3. Comunicado do ministério da Justiça e Negócios Interiores ao chefe de polícia da capital, informando que a Legação do Brasil em Berna relatou a expulsão do território suíço do anarquista italiano Alfred Alsergio Tiume. Fundo Polícia - GIFI. BR RJANRIO OI 6C 50;

4.  Comunicado do ministério da Justiça e Negócios Interiores ao chefe de polícia da capital, informando que a Legação do Brasil em Berna relatou a expulsão do território suíço dos italianos Leopoldo Cellati e Pietro Erasmo Vicenzi. Fundo Polícia - GIFI. BR RJANRIO OI 6C 50;

5. Comunicado da Visita da Polícia do Porto do Distrito Federal, informando sobre o desembarque de anarquistas deportados pelo governo argentino em Montevidéu. Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1903. Fundo Polícia - GIFI. BR RJANRIO OI 93;

6. Telegrama do chefe de polícia de Buenos Aires para o chefe de polícia do Rio de Janeiro informando o embarque de dois anarquistas expulsos da Argentina, com destino à Europa. Buenos Aires, 12 de janeiro de 1903. Fundo Polícia - GIFI. BR RJANRIO OI 93;

7. Decreto 1641 de 7 de janeiro de 1907. Fundo Decretos Legislativos. BR RJANRIO 24 CAI24 PAC89;

8. Individual datiloscópica de Antônio Rodrigues da Silva. Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1919. Série Interior - Estrangeiros: Visto - Expulsão - Permanência (IJJ7). BR RJANRIO A5 IJJ7 138;

9. Relatório do processo de expulsão do território nacional do espanhol Antonio Fernandes. Rio de Janeiro, 4 de outubro de 1907.  Série Interior - Estrangeiros: Visto - Expulsão - Permanência (IJJ7). BR RJANRIO A5 IJJ7 138 ;

10. Exemplar do jornal A Plebe. São Paulo, 17 de outubro de 1919. Série Interior - Estrangeiros: Visto - Expulsão - Permanência (IJJ7). BR RJANRIO A5 IJJ7 138;

11. Comunicado do 2o delegado de polícia de São Paulo, informando da fundação de um partido comunista na cidade de Baurú. São Paulo, 10 de novembro de 1919.  Série Interior - Estrangeiros: Visto - Expulsão - Permanência (IJJ7). BR RJANRIO A5 IJJ7 138;

12. Portaria do processo de expulsão do português João Fernandes do território nacional. Campinas, 1 de abril de 1920. Série Interior - Estrangeiros: Visto - Expulsão - Permanência (IJJ7). BR RJANRIO A5 IJJ7 163;

13. Ofício do chefe de polícia para a secretaria da polícia do Distrito Federal informando o embarque de anarquistas portugueses processados por aquela delegacia. Rio de Janeiro, 12 de agosto de 1924. Série Interior - Estrangeiros: Visto - Expulsão - Permanência (IJJ7). BR RJANRIO A5 IJJ7 163.

 

 

 

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