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De Hitler a Roosevelt

Thiago Mourelle _ Doutor em história. Pesquisador do Arquivo Nacional   

Você sabia que Adolf Hitler e Benito Mussolini se corresponderam com Getúlio Vargas ao longo dos anos 1930 e, inclusive, no início dos anos 1940, com a Segunda Guerra Mundial já iniciada? Da mesma forma, os Estados Unidos da América também foram um interlocutor frequente do governo brasileiro no período, por intermédio do presidente Franklin Delano Roosevelt.

Uma pesquisa detalhada na correspondência da presidência da República nos anos 1930 e 1940 revela muita coisa relevante sobre aquele período de nossa história. Há telegramas enviados de diversas partes do mundo, das mais diferentes nações. Igualmente interessante é mergulhar em algumas das milhares de cartas escritas pelo povo brasileiro, de próprio punho, para seu presidente.

O governo personalista de Getúlio Vargas, em especial a partir da ditadura do Estado Novo (1937-1945), defendia que a população tivesse uma relação direta com o mandatário, sem intermediários. Dessa forma, os trabalhadores eram incentivados a escrever diretamente ao líder da nação, o que ajudou a consolidar a imagem de “pai dos pobres”, que daria solução aos problemas dos mais humildes. E impressiona o fato de todas as mensagens serem lidas e respondidas de alguma forma. Inicialmente eram recebidas por funcionários que as encaminhavam ao ministério correspondente. Em seguida, os servidores ministeriais as resumiam e repassavam para a Presidência da República com uma sugestão de resposta.

Entre os pedidos mais frequentes estão os de pessoas que ofereciam seus filhos para que Vargas fosse padrinho, como o desta carta. Quase sempre o governo respondia positivamente e designava um juiz ou outra autoridade local para ser o representante do presidente no batizado. Outras temáticas que se repetiam eram pedidos de emprego, de auxílio financeiro, reclamações contra patrões e agradecimentos pelas leis trabalhistas criadas.

Um assunto também recorrente são as solicitações para que Vargas interferisse pessoalmente a fim de obter vagas em determinados estabelecimentos de ensino para os filhos dos remetentes. Em algumas ocasiões as próprias crianças e adolescentes subscreviam os pedidos. É o caso, por exemplo, do menino Monclar Luís de Miranda, que escreve em 1940 sobre suas dificuldades financeiras em virtude de ser órfão de pai e mãe, dependendo da ajuda da avó. O garoto de 11 anos, morador do bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, enviou sua fotografia para Vargas pedindo a intervenção do presidente para obter ingresso no Colégio Militar. Monclar termina dizendo que beija  “as mãos do benemérito Getúlio Vargas” em agradecimento pela atenção.

A carta chegou até a Presidência da República acompanhada da explicação do Ministério da Guerra de que a admissão em tal colégio de dava por processo seletivo e, portanto, não era possível atender ao pedido do menino. Encaminhamento parecido foi dado a muitos outros, inclusive à solicitação de um rapaz de 16 anos, Luiz Croce Filho, que suplicava em carta pela sua admissão na Escola Preparatória de Cadetes. Croce enviou o original de vasta documentação, inclusive seu documento de identificação, a fim de que tudo fosse encaminhado para a instituição que faria sua matrícula. Mas, pela mesma razão de Monclar, também não foi atendido.

Assim, páginas e mais páginas com súplicas chegavam ao gabinete civil da presidência, com os mais diversos casos. Em 1939, encontramos um pedreiro que escreve ao presidente pedindo ajuda para adquirir uma perna mecânica após perder a perna direita, o que o dificultava de trabalhar e, consequentemente, de sustentar sua família. Outra solicitação pedia autorização para o lançamento de uma marca de perfumaria chamada “Presidente”. Neste caso, o proponente enviou uma imagem com a estamparia da marca. Já nos casos de denúncias de irregularidades, a carta era respondida ao autor com a informação de que havia sido remetida ao ministério responsável, para averiguação.

Havia, inclusive, quem escrevesse para Vargas reclamando de programas oficiais veiculados no rádio, como o conteúdo transmitido na “Hora do Brasil”. Nesta carta, o autor, chamado Álvaro Silva, se autointitula “um patriota”. Em seu texto, escrito em 22 de janeiro de 1940, Silva critica a parte do programa radiofônico que foi ao ar homenageando Noel Rosa que, nas palavras dele, era um “sambista que escrevia sambas de malandragem” que remetia ao “tempo das senzalas”, uma visão preconceituosa e racista.

Da mesma forma com que encontramos na documentação essas centenas de cartas enviadas pelos brasileiros, existe também a correspondência internacional, de chefes de Estado e outras autoridades para Getúlio Vargas, além de telegramas e relatórios trocados entre o presidente e seus ministros. Em 9 de janeiro de 1942, o serviço de inteligência chefiado pelo Major Antônio José Coelho dos Reis remeteu relatório ao Ministério da Guerra indicando preocupação com células nazistas na América do Sul. O documento chegou ao ministro, Eurico Gaspar Dutra, que respondeu à questão em mensagem ao presidente, assegurando que já havia tomado medidas preventivas e que, até então, não havia indícios de um “movimento de agitação ou rebeldia, decorrente da situação internacional”.

Porém, se o nazifascismo era uma preocupação para o serviço de inteligência em 1942, antes e até mesmo durante a Segunda Guerra Mundial o Brasil mantinha relações cordiais com Hitler e Mussolini, respectivos líderes nazista e fascista de Alemanha e Itália. É importante lembrar que a política econômica de Vargas aumentou significativamente as relações comerciais com esses dois países, no intuito de diversificar a balança comercial brasileira. Naquele momento, Estados Unidos e Inglaterra eram os dois principais parceiros do Brasil – e continuaram a ser, mesmo com o incremento do comércio com outras nações –, que possuía dívidas significativas com ambos, a ponto do Ministro da Fazenda, Artur de Sousa Costa, ter realizado visitas à América do Norte e ao Reino Unido em 1935, a fim de renegociar os débitos.

Se o aumento do comércio com Hitler e Mussolini era bem-visto no Brasil, a força militar e, principalmente, a relação estreita que os dois líderes haviam construído com as populações alemã e italiana eram ainda mais enaltecidas. Ao longo dos anos 1930 era comum vermos jornais brasileiros exaltando as grandes marchas militares e os discursos em praça pública que levavam milhões de alemães e italianos às ruas. Cabe ainda lembrar que dentro do próprio governo brasileiro havia uma ala simpática ao nazifascismo que ideologicamente estava mais alinhada aos alemães e italianos do que com os norte-americanos. O próprio Vargas se inspirou no Ministério da Propaganda nazista em suas ações no intuito de se promover e se aproximar dos brasileiros.

Em 20 de dezembro de 1939, pouco mais de três meses de já iniciada a guerra mundial, Mussolini enviou este documento para Getúlio Vargas, assinado de próprio punho, comemorando com o governo brasileiro a realização do primeiro voo de uma companhia aérea italiana até o Brasil, o que estreitaria, segundo o Dulce, a relação entre os dois povos. Getúlio respondeu dias depois, neste telegrama, felicitando Mussolini e falando em “estreitar laços” entre as pátrias e facilitar as “relações de interesse econômico e cultural”.

Já no dia 2 de maio de 1940 foi a vez de Adolf Hitler enviar mensagem para o presidente Vargas. O Führer alemão agradecia uma mensagem anterior, enviada por Getúlio Vargas, parabenizando Hitler por ocasião de um feriado nacional daquele país. Na resposta, Hitler dá “sinceros agradecimentos” pelas “simpáticas felicitações” transmitidas pelo ditador brasileiro. Cabe lembrar que, a essa altura, a guerra já ocorria há 8 meses, embora ainda em seus movimentos iniciais.

Porém, podemos considerar que o relacionamento de Vargas com o presidente estadunidense Roosevelt, a essa altura, era mais estreito do que com os citados acima. O norte-americano já havia visitado pessoalmente o Brasil, em 1936, e se encontrado com o brasileiro. Na correspondência de Getúlio encontramos mensagem de Roosevelt agradecendo, inclusive, os momentos de lazer durante a viagem, como quando pescou com Vargas em Cabo Frio (RJ). O brasileiro, por sua vez, retribuiu a mensagem enviando selos para a Roosevelt, que tinha por hobby colecioná-los.

Porém, mais importante é a troca de mensagens entre os dois na virada de 1941 para 1942. Após o ataque japonês a Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, os Estados Unidos entraram oficialmente na guerra. Na Conferência Interamericana de Havana, um ano antes, havia ficado acordado que os países das Américas manteriam neutralidade na guerra que se iniciava, mas que uma agressão bélica a qualquer nação da região seria considerada um atentado a todos os países do continente. Assim, os EUA, imediatamente após o ataque japonês, pressionaram para que o Brasil e os demais se posicionassem contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão).

Em janeiro de 1942, o governo brasileiro finalmente rompeu relações com os países do Eixo. Sobre isso, encontramos diversas cartas de congratulações entre os países das Américas. E telegramas de autoridades europeias. Entre estas, a mensagem do húngaro Mihaly Karolyi, ex-primeiro-ministro de seu país entre 1918 e 1919, líder do “Movimento Nova Democracia Húngara”, que se opunha ao seu governo de seu país – que apoiava os nazifascistas – e se irmanava a Vargas, a quem oferecia apoio e colaboração.

Já Roosevelt enviou longa mensagem a Vargas agradecendo e parabenizando o brasileiro pelo ingresso na luta em “defesa da liberdade, da justiça e dos direitos humanos”. O presidente norte-americano reiterou que enviava a mensagem a pedido do Congresso daquele país, a fim de se congratular com os países que eram seus aliados, entre os quais considerava o Brasil um dos mais importantes. Vargas respondeu prontamente, em 30 de janeiro de 1942, dizendo-se satisfeito por “ter cumprido o seu dever irmanando-se aos demais povos da América nessa hora de graves preocupações”.

Nesse momento, se ainda restava alguma dúvida, ficou evidente de que o Brasil, se fosse participar militarmente da guerra, seria ao lado dos norte-americanos e, consequentemente, na aliança militar dos Aliados (Inglaterra, França, União Soviética, EUA). Nos meses seguintes, o afundamento de navios brasileiros na costa do país por forças navais alemães deu a senha para que o governo brasileiro, principalmente diante da pressão popular, declarasse guerra ao Eixo, o que ocorreu em 22 de agosto de 1942. Os principais inimigos, que até então eram os comunistas, passaram a ser os nazifascistas. Nos quatro cantos do território nacional, imigrantes japoneses, italianos, alemães e seus descendentes sofreram, em diversas cidades, perseguições e acusações de serem traidores da pátria ou que estivessem a serviço dos países que agora eram inimigos.

Nas cartas que chegavam para o governo, escritas por populares, destaca-se o engajamento da população justamente na busca por ajudar de alguma forma na luta contra o nazifascismo. Em 12 de setembro de 1942 o general Assis Brasil encaminhou para a presidência da república o oferecimento do campeão nacional de tiro, que havia sugerido, em carta, participar de uma “lição prática de tiro de carabina e revólver” em programa de rádio, a fim de que os brasileiros aprendessem a atirar, para que “cara tiro ponha um eixista fora de combate”. Já em 11 de fevereiro de 1943, o cidadão Henrique Glória de Serpa Pinto sugere a compra pelo governo e consequente distribuição de seu livro “Será Hitler o anticristo?” , para conscientizar os brasileiros do perigo que o líder alemão representava.

Muitos foram os militares reformados que quiseram retornar à ativa para entrar em combate na guerra. Há ainda cartas de presos, que pediam a liberdade a fim de se juntarem às Forças Armadas. E mesmo brasileiros comuns, de norte a sul do país, que se ofereciam para defender o país no teatro de guerra. Nesta carta, Raimundo Dantas, Dermeval Dias Fontes e Newton Brito, três jovens baianos, alegam estarem desempregados e, assim, solicitam o custeio de passagens para deslocamento até a capital do Brasil, que na época era o Rio de Janeiro, a fim de que pudessem ingressar no Exército brasileiro.

Assim, a documentação reunida no fundo Gabinete Civil da Presidência da República, no Arquivo Nacional, possibilita um mergulho nos anos 1930 e 1940. Por meio dessa volumosa correspondência é possível aprender sobre questões internacionais e perceber a estratégia de interação que Getúlio Vargas desenvolvia com os brasileiros internamente. Se, de um lado, as mensagens das autoridades revelam estreitamento ou afastamento das relações entre países; de outro, as cartas populares nos mostram as preocupações cotidianas e a forma como o cidadão comum enxergava os acontecimentos políticos do momento. Por tudo isso, são fontes históricas fundamentais para a compreensão da História do Brasil.

LIsta de documentos:

: Todos pertencem ao fundo Gabinete Civil da Presidência da República, código 35:

 

  1. Departamento de Imprensa e Propaganda. Lata 510. Carta de 13 de maio de 1942.
  2. Ministério da Guerra. Lata 338. Carta de 28 de novembro de 1940. Imagem do remetente.
  3. Ministério da Guerra. Lata 338. Carta de 28 de novembro de 1940. Trecho do texto do remetente.
  4. Ministério da Guerra. Lata 338. Carta sem data, provavelmente 1941. Trecho do texto do remetente.
  5. Ministério da Guerra. Lata 338. Carta sem data, provavelmente 1941. Documento de identificação do remetente.
  6. Ministério da Justiça. Lata 116. 24 de abril de 1939. Encaminhamento para Vargas do pedido de auxílio de um trabalhador.
  7. Ministério da Justiça. Lata 116. 30 de dezembro de 1938. Estamparia da marca “Presidente”.
  8. Representantes de entidades de representação de classe. Lata 8. 26 de agosto de 1934.
  9. Departamento de Imprensa e Propaganda. Lata 510. Carta de 22 de janeiro de 1940. Cidadão reclamando da programação do “Hora do Brasil”.
  10. Ministério da Guerra. Lata 338. Carta de 9 de janeiro de 1942. Serviço de espionagem.
  11. Ministério da Guerra. Lata 338. Carta de 9 de janeiro de 1942. Encaminhamento para o presidente, assinado pelo general Eurico Dutra.
  12. Correspondência entre chefes de Estado, ministros e representantes estrangeiros. Lata 170. 20 de dezembro de 1929. Carta de Mussolini a Vargas.
  13. Correspondência entre chefes de Estado, ministros e representantes estrangeiros. Lata 170. Sem data. Telegrama de Vargas a Mussolini.
  14. Correspondência entre chefes de Estado, ministros e representantes estrangeiros. Lata 170. 2 de maio de 1940. Telegrama de Hitler para Vargas.
  15. Correspondência entre chefes de Estado, ministros e representantes estrangeiros. Lata 170. 5 de julho de 1942. Carta de Karolyi a Vargas.
  16. Correspondência entre chefes de Estado, ministros e representantes estrangeiros. Lata 170. Janeiro de 1942. Mensagem de Roosevelt para Vargas.
  17. Correspondência entre chefes de Estado, ministros e representantes estrangeiros. Lata 170. 30 de janeiro de 1942. Resposta de Vargas para Roosevelt.
  18. Ministério da Justiça. Lata 116. 11 de fevereiro de 1943. Sugestão de autor para que Vargas autorizasse a compra e distribuição de seu livro “Será Hitler o anticristo?”.
  19. Ministério da Justiça. Lata 116. 12 de setembro de 1942. Campeão de tiro sugere dar aulas, por intermédio do rádio, para a população aprender a atirar.
  20. Ministério da Justiça. Lata 116. 10 de dezembro de 1942. Desempregados pedem custeio de passagem para vir ao Rio se alistar no Exército para combater na Segunda Guerra Mundial.

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