.

 

 

Renata William Santos do Vale

Doutora em História – UFF / Pesquisadora do Arquivo Nacional

 

Renata William Santos do Vale

Doutora em História – UFF / Pesquisadora do Arquivo Nacional

 

Uma pesquisa muito superficial sobre assassinatos de mulheres em um conhecido site de buscas traz uma quantidade grande de notícias de jornais nos quais a maior parte das vítimas ou foi assassinada ou sofreu agressões de um companheiro ou ex-companheiro (marido, namorado etc.). Comumente se ouve falar de casos de feminicídio causados por homens que não conseguiram superar o fim de um relacionamento, ou não conseguiram relacionar-se com as mulheres agredidas, ou mataram por ciúmes. Esse tipo de crime e agressão não é novo, e aparentemente o Brasil parece viver uma “epidemia” desses casos de violência extrema contra mulheres, com um assassinato a cada 6 horas (levantamento feito pelo site G1, com base nos dados oficiais dos 26 estados e Distrito Federal[1]). Esse dado, alarmante, nos remete a um outro número, de mais ou menos um século atrás: “Cresce dia a dia, o número de mulheres assassinadas no Brasil. De seis em seis horas assassina-se uma brasileira no Brasil!...”[2]

Não, não é uma coincidência; muito embora se considere que esse número nos anos de 1920 seja um exagero, ao levarmos em conta as fontes do período[3]. Ao longo de toda a história sempre houve muitos casos de mulheres sendo mortas por parceiros, por crimes como adultério, ou por causa de ciúmes, de rejeições e outras razões banais dadas pelos homens que as matam. Até 1830, o código que vigorava no Brasil eram as Ordenações Filipinas, um conjunto de leis do século XVII. No livro V, que regulava as ações penais, estavam previstos crimes como adultério, estupro, defloramento, e muito embora quase todos tivessem penas duríssimas, como a morte, galés e degredo para África, na prática a maior parte se resolvia ou com o casamento da vítima com o agressor, em caso de estupro e defloramento, ou no caso de adultério feminino, a pena de morte da mulher pela mão do marido era plenamente aceita. Com a implantação do código criminal do Império em 1830, começa a haver uma racionalização nas penas e punições aos crimes particulares, que envolvessem a família e o amor, muito embora houvesse atenuantes para os crimes que fossem em defesa da própria pessoa e seus direitos, inclusive defesa da honra (capítulos II e III). Por exemplo, entre os crimes contra a “segurança da honra” estavam o de rapto e estupro, para os quais eram previstas penas de desterro para outra comarca ou província ou prisão com ou sem trabalho forçado, e até de dote, mas nos casos em que fosse possível o casamento com as ofendidas, ficavam suspensas automaticamente as penas. Entretanto, nem sempre o resultado era conforme a lei.[4]

Entre os “crimes contra a segurança do estado civil e doméstico” estava o adultério. À mulher que cometesse adultério caberia uma pena de prisão com trabalho, o mesmo válido para o adúltero. Entretanto, no caso dos homens, a mesma pena somente se aplicaria caso tivessem casos permanentes, nos quais mantivessem concubinas “teúdas e manteúdas”. Adultérios ocasionais, por exemplo, não eram crimes, seriam da natureza do homem. Apesar da desigualdade do crime entre os sexos, não era prevista pena de morte; mas no caso de assassinato sempre havia o atenuante da defesa da honra.[5]

O código de 1890 não avança muito em relação à lei anterior. No caso de raptos e estupros, pouco muda em relação ao código de 1830. Como no caso do processo de estupro cometido por Francisco Lourenço da Rosa, empregado da limpeza pública, morador da rua Santa Filomena, contra a menor de 16 anos Inocência Maria de Moraes, que vivia com a mãe na rua Joaquim Silva, na estação da Piedade[6]. Francisco era noivo da menor, e, “prevalecendo-se dessa situação e de se achar a sós com a mesma, e mediante o emprego de força física, conseguiu ter cópula carnal, desvirginando-a por essa forma”. O fato deu-se em princípios de outubro de 1914, mas a denúncia na vara criminal foi feita somente em 28 de dezembro do mesmo ano. Quem fez a declaração que abriu o inquérito foi a mãe da jovem, Carlota Maria de Moraes, 34 anos, viúva, de serviço doméstico, residente em Irajá, na travessa Portela, analfabeta. Francisco Lourenço “se negou a reparar o mal que fez” à Inocência, não se casando com ela. Então a mãe resolveu dar queixa na delegacia. A menor estava grávida.

A menina também prestou depoimento e disse que o noivo estava morando com ela e a mãe quando ocorreu o estupro. Depois ele mudou-se da casa e passou a aparecer menos. Chegou a pedir para a menina fugir com ele, e ela se recusou. Então ele sumiu de vez. Foi quando Inocência contou tudo o que havia acontecido para a mãe, vendo que ele não se casaria com ela.

Curiosamente, há no processo um documento da Superintendência do serviço de limpeza pública da prefeitura do Distrito Federal, atestando não existir nenhum Francisco Lourenço da Rosa como trabalhador naquela instituição. Existia, por outro lado, um Francisco Lourenço, carroceiro, na estação do Engenho Novo. Francisco também não residia na rua Santa Filomena, como havia informado, e por isso não pôde ser intimado, e ninguém sabia seu paradeiro. Há um despacho no processo de 16 de outubro de 1924, 10 anos depois do acontecimento, que dizia que o crime julgado havia prescrito porque a pena seria de seis anos de prisão. Embora não tenha sido inocentado, Francisco se livrou da punição, e não se casou com Inocência, “reparando o mal”.

Mas o código de 1890 trouxe algumas novidades. Entre elas a possibilidade, no caso de adultério, de as penas não serem aplicadas em caso de perdão das partes envolvidas. Mas talvez a mais importante e que merece uma menção é o artigo que define que não é criminoso (ou seja, não cometeu crime) aquele que estivesse “em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime”. Esse artigo foi largamente usado pelos advogados de defesa dos assassinos de mulheres para justificarem a ausência de crime e a absolvição dos réus – o que teve grande efetividade. Infelizmente esse tipo de argumento, de estar fora de si, continua a ser usado até hoje por homens para justificarem a violência e o abuso contra as mulheres.

Na virada da República, até os anos 1930, entretanto, parecia haver uma “epidemia” dos crimes considerados passionais, ou “crimes da paixão”, contra as mulheres.[7] Esses crimes, em sua maioria agressões físicas, tentativas e assassinatos, aconteciam com maior frequência entre a população pobre trabalhadora da cidade do Rio de Janeiro. A documentação utilizada para estudar esses casos – os processos criminais –, em sua quase totalidade se refere às camadas mais baixas da sociedade, sobretudo às mulheres populares. Não é que esses crimes não ocorressem entre as mulheres de classes mais altas da sociedade, mas as condições de vida influíam muito nessa prática. A maior parte das mulheres das camadas mais abastadas da sociedade tinha muito menos liberdade do que as mulheres pobres que transitavam pelas ruas da cidade no seu cotidiano, para trabalhar ou divertir-se – elas saíam de casa muito menos. As regras morais da burguesia ascendente na jovem República também se aplicavam a elas com maior rigor: o recato, o valor da virgindade, a fidelidade conjugal, o lugar de submissão da mulher, a atuação unicamente na esfera privada – entre a casa e os filhos – talvez fossem elementos que influenciassem em um número menor de casos de crimes entre elas. Talvez a causa mais provável para a quase ausência de processos criminais de mulheres da “boa sociedade” do Rio de Janeiro seja o abafamento dos comportamentos que pudessem ser considerados escandalosos.

Os processos criminais, documentação bastante utilizada nos estudos dos comportamentos dos populares, são por vezes muito áridos, não se pode esquecer que são documentos de caráter oficial, expressam, portanto, uma visão do Estado sobre aquelas pessoas, e são todos produzidos por mãos masculinas, também expressam uma visão de mundo dos homens sobre as mulheres, que busca normatizá-las. Apesar dessas dificuldades, são uma boa fonte, que nos permite, por vezes, vislumbrar um pouco da vida das vítimas. Outras fontes importantes para o estudo dos crimes contra as mulheres nas primeiras décadas da República são os periódicos e os relatos de cronistas do Rio de Janeiro, como Lima Barreto, João do Rio, Benjamim Costallat, entre outros. Manchetes de primeira página do jornal A Noite, por exemplo, como “Fim sangrento de um adultério. O assassinato de hoje.” (Rio de Janeiro, 1º de agosto de 1911, n. 13)[8] ou “Amor e ciúme. Homicídio e tentativa de suicídio na rua do Lavradio” (Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1911, n. 129)[9] ou “As tragédias conjugais. Atirou na mulher e matou-se. Ela o traía? Ele a explorava?” (Rio de Janeiro, 2 de julho de 1920, n. 3.074)[10] dão uma ideia não somente da quantidade de crimes que estampavam as folhas cariocas, mas também do sensacionalismo que a imprensa garantia ao descrevê-los, dando ares de novelas aos tristes acontecimentos. Em praticamente todos os casos em que as mulheres são as vítimas, acabam chamadas de histéricas, são-lhes atribuídos “maus-comportamentos” (não cumpriam as tarefas domésticas que a  elas eram atribuídas, eram adúlteras, causavam ciúmes propositadamente nos companheiros), e são, em geral, consideradas culpadas da tragédia que se abatia sobre o lar, restando aos homens a imagem de enganados, coitados enciumados, vítimas de adúlteras, loucos de paixão e por isso mesmo, considerados descontrolados e fora de si.

Como no caso de Isaac Malheiros que assassinou Maria de Azevedo Oliveira, sua “amante” no dia 23 de janeiro de 1907.[11] Não ficou claro a que horas ocorreu o crime porque na denúncia dizia entre 7 e 8 horas da manhã, e no libelo dizia que foi por volta das 20h. Essa era uma das razões pelas quais o réu solicitava ao Supremo Tribunal Federal a anulação do processo – por haver muitas inconsistências, erros e falhas. Isaac e Maria eram moradores da rua General Pedra (Avenida Cabral). Havia 6 ou 7 testemunhas no local, mas apenas 2 compareceram para prestar depoimento. O réu usou um “canivete punhal” e as lesões resultantes foram, segundo a autópsia, causa suficiente para a “morte imediata” de Maria. O réu acusava a amante de traí-lo com Manuel Felipe e alegava “atenuantes” para o caso: tinha comportamento exemplar, não foi por “motivo frívolo”, já que estava “enfurecido de ciúmes”, e estava em “embriaguez incompleta”. O Tribunal, apesar de reconhecer os erros processuais, decide manter a sentença de grau médio de 15 anos de prisão para Isaac, em 1911.

Mesmo no caso em que a mulher não é considerada culpada de ser vítima de um crime, o resultado final do processo não lhe favorece. É o caso de Luísa de Almeida, 33 anos, portuguesa, analfabeta, do lar.[12] O acusado era Manuel de Almeida Castro, natural de Portugal, morador da Quinta do Caju, pescador, casado com Luísa, a quem agrediu fisicamente e tentou matar no dia 16 de agosto de 1915, às 13h30, aproximadamente, na casa de n. 4, onde viviam. Pegou um machado e com o cabo deu pancadas nas costas e ombro esquerdo de Luísa, além de ter mordido o lado direito de sua face, “de tirar sangue”. Quando Manuel virou o lado do machado e ia golpear o pescoço da mulher, uma testemunha, Rosa Cândida dos Santos, senhoria dos dois, entrou na casa e depois de muita luta corporal e insistência, conseguiu tirar o machado das mãos de Manuel, que fugiu. Luísa foi acudida por outros dois vizinhos, Maria Pimenta e Manoel [...], que a ajudaram a se levantar do chão e a deitar na cama. As testemunhas declararam que a mulher era constantemente espancada pelo marido, e havia acabado de chegar do hospital quando foi agredida novamente por Manuel, que havia saído para beber cachaça com os amigos e estava bastante alcoolizado.

Manuel alegou primeiro que Luísa havia brigado com ele, e ele reagiu batendo com o machado em suas costas sem intenção de matá-la. Depois disse que era uma brincadeira, e que ele e a mulher viviam bem e em harmonia. A justiça, em 1919, concluía que, de acordo com as lesões analisadas no exame de corpo de delito, não era possível provar (apesar dos depoimentos das testemunhas) que houvesse intenção de matar, então o caso se enquadrava no artigo 303 do código criminal, ofensas físicas leves. Ao final do processo, a ação criminal foi julgada extinta e prescrita por haver 4 anos do caso. Nada aconteceu ao agressor.

Ao mesmo tempo que os homens culpavam as mulheres por não terem desempenhado os papéis que lhes eram atribuídos como justificativa para as agressões, as mulheres também usavam do mesmo artifício para cobrar e culpar os homens, quando eles se recusavam ou negligenciavam seus papéis tradicionalmente impostos, como o de provedor da casa, por exemplo. Foi o caso de Orlando de Oliveira, pardo, 33 anos, funcionário do comércio, analfabeto, que no dia 20 de julho de 1921, às 23h no morro de São Carlos, atrás do cemitério do Catumbi, deu um tiro de revólver em sua amásia Maria Martins, ou como era conhecida, Maria Antônia.[13] Essa foi procurar Orlando, que estava na casa de Margarida Dionísia e suas irmãs a conversar, porque estava com ciúmes dele, e porque não aparecia em casa havia 2 dias para a prover de alimentação, papel tradicionalmente imposto aos homens e cobrado por Maria. Na porta da casa de Margarida, Orlando e Maria tiveram violenta discussão que ninguém presenciou, embora os vizinhos tenham escutado. Foi quando se ouviu um tiro que acertou Maria nas costas. Um vizinho e testemunha, Porfírio Dionisio dos Santos contou que chamou o socorro e Maria fora encaminhada para a Santa Casa de Misericórdia. Orlando fugiu para o alto do morro. Além dessa testemunha, constam os depoimentos das três irmãs, o da própria Maria e do próprio Orlando. O único testemunho que diferiu foi o desse, que disse que não era amásio de Maria, mas que havia tido relações íntimas com ela. Que ela o procurou no barracão de Margarida e discutiram, quando ela o agarrou e ele deu um tiro que não tinha a intenção de acertá-la. O inquérito concluía que Orlando era culpado e deveria ser processado de acordo com o artigo 294 do código penal (tentativa de homicídio).

Os motivos mais comuns dados como justificativa para as agressões eram ciúme, adultério, abandono e tentativas frustradas de reconciliação, difamações e resistência ao assédio e violência sexual. Nesse caso podemos citar a tentativa de assassinato de Artur Aguiar contra Ester da Cunha Pereira, em 3 de abril de 1908.[14] Artur, natural de Santos (SP), jornalista, instruído, foi preso em flagrante em um bonde da linha Núncio-Lapa, ao agredir com uma faca de correeiro (e portar um facão do mato) a “dona” Ester, casada, objeto de seu desejo, e a Pastor de Almeida Castro, que estava no bonde e a defendeu, acabando por ficar ferido também. Artur era também casado e vivia perseguindo Ester. Ele se disfarçava para poder persegui-la e estava vestido de operário no dia que tentou matá-la. O motivo da agressão “há muito premeditada pelo acusado, o ter Ester Pereira repelido as suas declarações de amor, visto ser uma mulher casada e honesta; resultando disto ser constantemente perseguida com ameaças por Artur Aguiar, que a procurou por diversas vezes, com a manifesta intenção de matá-la, usando, nestas ocasiões, de disfarces”.

Casos de ciúme e desconfiança de adultério eram os mais frequentes. Como o de Pedro Batista de Almeida, foragido, que tentou matar sua amásia Maria das Dores Ramos, residentes no morro da Favela, por motivo de ciúme no dia 24 de outubro de 1911.[15] Maria estava sentada do lado de fora do botequim de Salustiano do Santos quando Pedro se aproximou, deu-lhe uma bofetada, que a fez cair, e depois um tiro de revólver que acertou no ombro direito. Ou o de Manoel Domingos Santana, que invadiu a festa de aniversário de Duque Augusto de Souza França em 9 de junho de 1907, no morro da Favela, e tentou matar sua esposa Rosalina Maria da Conceição, de quem estava separado havia dias.[16] Ele usou uma barra de ferro como “baioneta” e a feriu gravemente no ombro esquerdo e no lado direito das costas, como o exame de corpo de delito atestava.

Ou, por fim, o caso dos italianos Demetrio Amalto e sua esposa Maria Antônia Patuchi.[17] Entre 5h e 6h da manhã, aproximadamente, do dia 25 de agosto de 1904, na rua General Pedra, no Campo de Santana, Demetrio, italiano de Salerno, 36 anos, vendedor ambulante, analfabeto, morador da rua da Providência, feriu sua mulher Maria Antônia, também italiana de Nápoles, 38 anos, com uma faca, provocando um corte abaixo do seio direito, quando essa ia ao mercado fazer compras para sua quitanda. Segundo Maria, eles estavam separados havia 10 meses e ela estava amasiada com Felippe Pedro Mica, seu conterrâneo, havia 5 meses. O marido a teria ferido por vingança. Ferida na praça da República, Maria conseguiu chegar no largo da Providência e só então foi socorrida, levada à polícia e depois ao hospital da Misericórdia, onde foi feito exame de corpo de delito.

O marido deu depoimento dizendo que não foi ele que a agrediu, que havia sido outra pessoa e ela culpava-o por vingança. E o marido ainda dizia que Maria o abandonou havia 7 meses para se amasiar com outro. Maria afirmava que o deixou em virtude dos maus tratos por ela sofridos “sem motivo algum”, como se houvesse motivos que justificassem a violência do marido.

* * *

As primeiras décadas da República (principalmente entre os anos 1890-1930) eram um momento de modernização da sociedade – de apagamento da memória imperial e colonial do país, da incorporação de novos valores e padrões de comportamento burgueses, de viés civilizatório e orientado pela ideia de progresso, para regular e disciplinar as classes populares trabalhadoras do Rio de Janeiro, não somente no âmbito público como no privado. O comportamento das mulheres era um dos campos em que mais se aplicava a moralidade e os valores da classe dominante. A elas cabia o ordenamento da casa e dos filhos; aos homens, prover a família. Entretanto, muitos dos valores aplicados às elites cariocas não encontravam eco entre os populares: valores como virgindade, honra, casamento não tinham o mesmo valor para os mais pobres, que tinham referenciais simbólicos diferentes. Nessa nova cidade e ordem republicana, as mulheres também começam a ocupar novos espaços e novas posições. As mulheres populares trabalhavam fora de casa, viviam nas ruas, contribuíam no sustento da casa, que nem sempre era garantido pelo marido. Outro exemplo, o amasiamento era plenamente aceito entre a população pobre da cidade, enquanto era visto com desdém pelas classes abastadas, pela lei e pelas autoridades, que só aceitavam o casamento civil e religioso como prática moralmente aceita pela sociedade. Entre a alta sociedade, a honra do homem residia no comportamento e na virgindade da mulher – o mesmo não ocorria entre as camadas mais baixas. Entretanto, alguns desses valores da cultura das classes dominantes circulavam e afetavam as classes baixas. É assim que homens populares justificam a violência contra suas mulheres quando, por exemplo, são trocados por outros, e alegam a defesa da honra. Conforme nos ensinam Rachel Soihet (e Sidney Chalhoub):

[...] Sidney Chalhoub, discorrendo acerca das manifestações de violência entre os segmentos populares no Rio de Janeiro do início do século, argumenta que o homem pobre, por suas condições de vida, longe estava de poder assumir o papel de mantenedor, previsto pela ideologia dominante, como também o papel de dominador, típico desses padrões. Este, porém, sofria a influência dos referidos padrões e, na medida em que sua prática de vida revelava uma situação bem diversa, no que se refere à resistência de sua companheira a seus laivos de tirania, este era acometido de insegurança, contribuindo para que partisse para uma solução de força. A violência surgia, assim de sua incapacidade de exercer um poder irrestrito sobre a mulher, sendo antes uma demonstração de fraqueza e impotência do que força e poder. Tal explicação se completaria a partir do fato, entre outros, de que tais homens, desprovidos de poder e de autoridade no espaço público – no trabalho e na política, seriam assegurados pelo sistema vigente de possuí-los no espaço privado, ou seja, na casa e sobre a família. Nesse sentido, qualquer ameaça a esse poder e autoridade lhes provocava forte reação, pois perdiam os substitutos compensatórios para sua falta de poder no espaço mais amplo.[18]

E o lugar de violência no qual estes homens descarregavam suas frustrações era o corpo da mulher. Um homem traído que não matasse a mulher seria visto pelos seus pares como desrespeitado, enquanto o homem que matasse a mulher adúltera seria um herói, aquele que vingou a honra manchada com sangue.

À medida que cresciam as apelações dos réus aos atenuantes de defesa da honra e privação de sentidos, loucura momentânea, e mais e mais homens conseguiam livrar-se da prisão e condenação pelos assassinatos e agressões físicas, começava uma campanha entre juristas e advogados pela diminuição dos “crimes de paixão” e pela condenação dos assassinos de mulheres. É preciso ter cuidado porque essa campanha não tinha nenhum viés feminista, ela era uma tentativa de moralizar e controlar a sociedade e as paixões, tidas como comportamentos bárbaros e atrasados que deveriam ser eliminados de uma sociedade civilizada como a que se pretendia construir ao longo do século XX.

Embora os reformadores que participaram desta campanha tenham fornecido grandes evidências da opressão da mulher e da família, suas motivações para buscar controlar os uxoricídios não eram em nenhum sentido feministas. O objetivo da campanha era moralizar a sociedade, disciplinar as paixões e racionalizar o amor, a fim de torná-lo socialmente útil como base de relações familiares estáveis. Era a “defesa” e a “evolução” da comunidade (“ordem e progresso”) que estava em jogo, não a elevação da condição social das mulheres.[19]

Como o caso de Elvira Monteiro, branca, portuguesa, 25 anos, casada, residente à rua Figueira, n. 37, quarto 9 (em uma casa de cômodos).[20] José Monteiro, 29 anos, cocheiro, português, seu marido, “por questão de ciúmes” disparou 5 vezes o revólver contra sua mulher e a matou quase instantaneamente, de acordo com o auto de exame cadavérico. O crime deu-se no dia 11 de janeiro de 1908, às 20h, aproximadamente. A polícia convocou 7 testemunhas para narrarem o crime. A primeira, Joaquim Jorge, português, 56 anos, confirmou o crime e disse ter se atracado com José Monteiro para tomar-lhe a arma. Disse que José era trabalhador, que a causa do crime eram “desavenças entre o casal” – aparentemente Elvira tinha um amante, Pedro Primavera Filho. Não consta nenhum qualificativo que indicasse que Elvira era boa esposa, trabalhadora também.

O sargento da polícia que primeiro acudiu ao crime disse praticamente o mesmo que Joaquim, com exceção de que Pedro Primavera estava no local do crime e se disse amante de Elvira, e que tudo parecia se “tratar de um caso em família”, em uma tentativa, talvez, de transformar o crime em uma questão privada. A testemunha Maria José de Souza, portuguesa, casada, 29 anos, residente na mesma casa de cômodos, afirmou que quando José chegou ao local, Elvira estava no quarto do amante; que José tentou invadir o cômodo por uma porta e que a vítima saiu por outra, tentou correr, mas foi alcançada e alvejada 5 vezes. Outra testemunha, Maria Guedes Monteiro, reafirmava a história e disse que era “público e notório o mau proceder de Elvira com Pedro” e que a “cena de sangue já era esperada tal a imprudência com que procedia Elvira”. A testemunha de nome Carlota Montez Costa disse o mesmo do comportamento de Elvira e que se esperava aquele resultado

Pedro Primavera, em seu depoimento, afirmava que não era amante de Elvira, que foi procurado em seu quarto por José Monteiro, e que a mulher não estava lá. Que sabia haverem dito a José em carta anônima que o “declarante entretinha relações ilícitas com a assassinada”. O último depoimento era de Maria Joaquina – a senhoria, dona da casa de cômodos, que lá também residia –, que confirmou que José Monteiro chegou procurando por Elvira no quarto de Pedro, que não a viu lá porque havia saído por uma porta nos fundos, que José a perseguiu até a escada e atirou nela pelas costas.

Ao longo do processo, os testemunhos dessas pessoas e de outras intimadas a depor mudaram muito. Chegou-se mesmo a conclusão de que Elvira não era amante de Pedro. Em uma anotação no processo consta que não foi possível comprovar o adultério, apesar de tantos depoimentos afirmando a infidelidade da vítima, e José fora denunciado nas penas do artigo 294 do código penal (homicídio) e foi preso na Casa de Detenção em 22 de dezembro de 1908. Em apelação o júri acreditou que o réu estava em estado de privação de sentidos e o juiz o absolveu.

Para concluir, vale a pena ler um trecho de um artigo publicado no periódico A Esquerda, de 25 de abril de 1931, que analisava a gravidade dos casos de crimes passionais que ocorriam no Rio de Janeiro naquela época. Não custa lembrar que no ano seguinte, as mulheres conseguiram o direito de voto no Brasil.[21]

De que lhes vale pleitear, como pleiteiam, a emancipação da mulher pelo trabalho próprio, pelo nivelamento cultural ao homem, pelo exercício pleno e irrestrito dos direitos políticos, se, ao mesmo tempo que o governo lhes ampara a aspiração legítima, e lhes secunda o esforço ingente e desinteressado – os maridos, os noivos, os amantes, os simples namorados, não contentes da hegemonia injusta que lhes asseguram vários milênios de subordinação afetiva, de dependência econômica, de sujeição intelectual e de completa escravização cívica, ainda as abatem como reses no picadeiro social?

Já não é pouco se alhearem, como alheiam-se aos problemas do tráfico e da prostituição, que é uma mancha indelével de opróbrio e de vergonha para todo o sexo. Já não é pouco admitirem, como desgraçadamente admitem, que os processos de estupro e defloramento corram à revelia de qualquer solidariedade, às vítimas que são o pasto predileto da chicana e da fraude à rabulice mercenária que pulula nas nossas varas criminais. Já não é pouco que se desinteressem, desumanamente, pela sorte das mulheres operárias, como se fossem seres híbridos, assexuados, e não tivessem como elas o mesmíssimo direito ao bem estar físico, intelectual e moral.

Que, ao menos, a vida mais que a honra, lhes mereça uma solidariedade ativa ante os golpes diários com que a covardia masculina se atocaia para golpeá-la.

[...]

A postos, pois, mulheres do Brasil! Em guarda, ao menos, as mulheres que vivem, que trabalham, que lutam, que sofrem, que se agitam nesta capital!

Será lindo que o mundo todo saiba que temos poetisas, declamadoras, cientistas, escultoras, pianistas, engenheiras, professoras, médicas, advogadas, e, em futuro não muito distante, até constituintes.

Mas seria infinitamente mais nobre que se lhe pudesse dizer que a mulher, entre nós, mesmo quando não declame, nem pinte, nem toque, nem trabalhe, nem vote, tem, ao menos, o direito rudimentaríssimo de viver...[22]

Os processos citados nesta matéria possuem as seguintes notações (em ordem do texto):

BR RJANRIO 70.0.PCR.4252.

BR RJANRIO 0R.0.PCR.6964.

BR RJANRIO 0R.0.PCR.8067

BR RJANRIO 0R.0.PCR.5550

BR RJANRIO 0R.0.PCR.3160

 

 

 

[1] Ver https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/03/08/brasil-bate-recorde-de-feminicidios-em-2022-com-um-a-cada-6-horas.ghtml.

[2] Os assassinos de mulheres. Revista Feminina, maio de 1920, n. 71, p. 18.

[3] Ver BESSE, Susan K. Crimes Passionais: a campanha contra os assassinatos de mulheres no Brasil: 1910-1940. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 9, n. 18, p. 181-197, ago.-set./1989. Acessado em 22/03/2023: https://www.anpuh.org/revistabrasileira/view?ID_REVISTA_BRASILEIRA=23&impressao.

[4] Ver ENGEL, Magali Gouveia. Paixão e morte na virada do século. Observatório da Imprensa. Edição 328, de 10 de maio de 2005. Acessado em 22/03/2023:

 https://www.observatoriodaimprensa.com.br/marcha-do-tempo/paixao-e-morte-na-virada-do-seculo/.

[5] Ver ENGEL, Magali Gouveia. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Topoi, Rio de Janeiro, n. 1, v. 1, p. 153-177, 2000. Acessado em 22/03/2023:

https://www.scielo.br/j/topoi/a/TvCYDf945n3FQ6VGNYwG6Km/?format=pdf&lang=pt e SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência. Mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989 e O corpo feminino como lugar de violência. Projeto História. São Paulo, n. 25, p. 269-289, jul.-dez. 2002. Acessado em:

https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10592/7882.

[6] Processo Criminal referente ao artigo 268. Rio de Janeiro, 1914. Arquivo Nacional. Vara Criminal do Rio de Janeiro, 5. Processos Criminais. BR RJANRIO CS.0.PCR.1291.

[7] Ver CORRÊA, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo: Brasiliense, 1981 (coleção Tudo é História).

[8] Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Acessado em 27/03/2023: http://memoria.bn.br/pdf/348970/per348970_1911_00013.pdf.

[9] Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Acessado em 27/03/2023: http://memoria.bn.br/pdf/348970/per348970_1911_00129.pdf.

[10] Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Acessado em 27/03/2023: http://memoria.bn.br/pdf/348970/per348970_1920_03074.pdf.

[11] Peticionário condenado por homicídio com uso de arma perfurante. Rio de Janeiro, 1907. Arquivo Nacional. Supremo Tribunal Federal. Revisões criminais. BR RJANRIO BV.0.RMI.357.

[12] Processo Criminal, artigo 294. Rio de Janeiro, 1915. Arquivo Nacional. Pretoria Criminal do Rio de Janeiro, 6 (Freguesia de São Cristóvão e Engenho Novo). Processos criminais. BR RJANRIO 71.0.PCR.156.

[13] Processo Criminal, artigo 294 (observação: incompleto). Rio de Janeiro, 1921. Arquivo Nacional. Pretoria Criminal do Rio de Janeiro, 5 (Freguesia do Espírito Santo e Engenho Velho). Processos criminais. BR RJANRIO 70.0.PCR.4252.

[14] Processo Criminal, artigo 294. Rio de Janeiro, 1908. Arquivo Nacional. Pretoria do Rio de Janeiro, 8 (Freguesia de Santana). Processos criminais. BR RJANRIO 0R.0.PCR.6964.

[15] Processo Criminal, artigo 294. Rio de Janeiro, 1911. Arquivo Nacional. Pretoria do Rio de Janeiro, 8 (Freguesia de Santana). Processos criminais. BR RJANRIO 0R.0.PCR.8067.

[16] Processo Criminal, artigo 294. Rio de Janeiro, 1907. Arquivo Nacional. Pretoria do Rio de Janeiro, 8 (Freguesia de Santana). Processos criminais. BR RJANRIO 0R.0.PCR.5550.

[17] Processo Criminal, artigo 294. Rio de Janeiro, 1904. Arquivo Nacional. Pretoria do Rio de Janeiro, 8 (Freguesia de Santana). Processos criminais. BR RJANRIO 0R.0.PCR.3160.

[18] SOIHET, Rachel. O corpo feminino como lugar de violência. Projeto História. São Paulo, n. 25, jul.-dez. 2002, p. 271. Acessado em 22/03/2023:

https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10592/7882. Ver também CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. O cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. 2ª ed., Campinas: editora Unicamp, 2001.

[19] BESSE, Susan K. Op. Cit., p. 195-196.

[20] Crime de homicídio com disparo de arma de fogo, artigo 294. Rio de Janeiro, 1908. Arquivo Nacional. Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. Cartório, 2. BR RJANRIO CA.CT2.0.159

[21] Ver KARAWEJCZYK, Mônica. A FBPF e a luta pelo voto feminino no Brasil - anos decisivos. Sítio eletrônico Que República é essa?, acessado em 22/03/2023:

http://querepublicaeessa.an.gov.br/temas/147-o-voto-feminino-no-brasil.html.

[22] Os crimes passionais. A Esquerda. Rio de Janeiro, 28 de abril de 1931, p. 2.

 

Referências biblioteca

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Todo o conteúdo deste site está publicado sob a licença  Creative Commons Atribuição-SemDerivações 3.0 Não Adaptada.