.

Maria Elizabeth Brêa Monteiro - Antropóloga, mestre em História, pesquisadora do Arquivo Nacional

 

“O genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito” Pierre Clatres [1]

 

O Brasil surgiu da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis, e da captura e apresamento de mão-de-obra nativa, num processo continuado de genocídio e etnocídio implacável, ainda não interrompido.

Os conceitos de genocídio e etnocídio são relativamente novos, em contraste com as práticas que ensejaram concebê-los. O crime de genocídio é reconhecido no ordenamento jurídico internacional a partir de 1948 por meio da Convenção para a prevenção e a repressão. No Brasil, além da ratificação e promulgação dessa Convenção, a Lei nº 2.889 de 1º de outubro de 1956 define e pune o crime de genocídio.

Cunhado pelo jurista polonês Raphaël Lemkin, em 1943, em razão das atrocidades perpetradas contra os judeus durante a 2ª Guerra Mundial, genocídio foi entendido como atos que buscam, a longo ou curto prazo, destruir a existência de um grupo. Mas ao longo de mais de 50 anos, o termo vem sendo problematizado na sua origem eurocêntrica e ampliado com vistas a contemplar as diferentes formas e práticas genocidas, nem sempre relacionadas a assassinatos em massa, como processos de desterritorialização, roubo de dignidade, supressão de condições físicas e culturais, prática de estupros, que impedem ou prejudicam acentuadamente a sobrevivência no todo ou em parte de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

A conquista do continente americano, a partir do século XV, deu início ao genocídio como um processo que perdura, de formas variadas, até os dias de hoje, impelido pela ganância e ambição. Helena Palmquist, em sua dissertação, evidencia a importância do tem para os povos indígenas do continente latino-americano.

Recursos naturais são drenados para as regiões colonizadoras dentro do mesmo país, resultando em devastação ambiental e dissolução de laços sociais e cosmológicos, com a ocorrência frequente de chacinas, assassinatos de lideranças, expulsões, trabalhos forçados, epidemias e alcoolismo. (Palmquist, 2018, p.56-57)

Em grande medida a história das nossas relações com os indígenas é uma crônica de chacinas e epidemias. Cada grupo indígena que se aproximou nestes mais de quatro séculos teve de pagar alto tributo em vidas às doenças que a civilização trouxe. As causas da despopulação indígena nos dois primeiros séculos da colonização da América podem ser atribuídas às guerras de extermínio, à exploração inumana e escravização dos indígenas e às epidemias (causa determinante para uma conquista tão rápida e eficiente). Todos esses fatores, em conjunto, provocaram profundos choques culturais, dissociação tribal e a fome que sempre acompanhou as infecções agravando o número de mortes. Com os surtos epidêmicos, as populações indígenas entravam em franco processo de desorganização social e econômica, criando condições muito favoráveis para um estado de penúria e fome. São historicamente relatadas as epidemias de varíola, gripe, pneumonia, tuberculose, coqueluche, responsáveis pela altíssima mortalidade dos povos indígenas. Mesmo a malária, em determinadas situações extremas, causa grandes perdas populacionais.

José de Anchieta, informando sobre os primeiros aldeamentos na Bahia, faz referência a epidemia de 1562 dizendo: “No mesmo ano de1562, por justos juízos de Deus, sobreveio uma grande doença aos índios e escravos dos portugueses, e com isto grande fome, em que morreu muita gente (...) entre escravos e índios morreriam 30.000 no espaço de 2 ou 3 meses”. (Ribeiro e Moreira Neto, 1992, p.28)

Uma estrofe do poema De Gestis Mendi de Saa, escrito pelo padre José de Anchieta exaltando os atos heroicos de Mem de Sá, “a quem Dom João o terceiro nosso felicíssimo rei entregou o governo brasílico”, revela a crueza do governador geral ao enfrentar os indígenas da costa brasileira: “(...) cento e sessenta aldeias incendiadas, mil as casas arruinadas pela chama devoradora, assolados os campos com suas riquezas, passado tudo pelo fio da espada (...)” (Anchieta, 1986, p.179)

 

Genocídio como processo

O genocídio contra os povos indígenas se concretiza na forma de massacres, guerra biológica, com o uso intencional ou não de patógenos, especialmente varíola ou gripe, contra a qual os povos indígenas não desenvolveram resistência; geração de epidemias pelo confinamento em áreas restritas densamente povoadas; escravidão e trabalho compulsório; deslocamentos forçados; fome e insegurança alimentar provocada pela destruição e ocupação de territórios ancestrais, ou pela destruição de recursos vitais à sobrevivência; a proibição de práticas culturais e exemplo da própria língua; a prática de estupros e a separação de crianças e pais e outras formas de prejudicar a reprodução biológica das comunidades.

“Nos primeiros vinte anos de vida republicana nada se fez para regulamentar as relações com os índios, embora nesse mesmo período a abertura de ferrovias através da mata, a navegação dos rios por barcos a vapor, a travessia dos sertões por linhas telegráficas, houvessem aberto muitas frente de luta contra os índios, liquidando as últimas possibilidades de sobrevivência autônoma de diversos grupos tribais até então independentes.” (Ribeiro, 1970, p. 127)

A própria fundação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais[2], em 1910, se deu em meio a denúncias de massacres contra os indígenas do sul do país, em especial os Kaingang, que enfrentavam a invasão de suas terras pela ampliação dos meios de comunicação e da implantação de fazendas de café. As denúncias feitas por Albert Fric sobre o extermínio de grupos indígenas no Brasil meridional ecoaram no XVI Congresso de Americanistas que acontecia em Viena, Áustria, em 1908. Na mesma época, o diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering defendia o uso da força para “afastar” os indígenas bravos que impediam a colonização em São Paulo e Santa Catarina. Nesse contexto, o governo federal criou um órgão encarregado de elaborar uma política de proteção e assistência aos povos indígenas.

Além de ações diretas, alterações graves e muitas vezes irreversíveis ao meio ambiente são igualmente ameaças ao habitat e à existência de povos indígenas, sendo, muitas vezes, as vítimas silenciosas de tais ações. A abertura de estradas, a exploração de minérios, a implantação de projetos econômicos de alto impacto como usinas hidrelétricas podem ser identificados como motores importantes que levam a situações deletérias para os povos indígenas. Como registra a 1ª Declaração de Barbados, de 1971[3]:

“Os indígenas da América continuam submissos a uma relação colonial de domínio, que teve sua origem no momento da conquista e que não se desfez no seio das sociedades nacionais. Esta estrutura colonial se manifesta no fato de que os territórios ocupados pelos indígenas são considerados e utilizados como terra de ninguém, abertos à conquista e à colonização.”

Nos anos 1940 e 1950 frentes de colonização no noroeste do estado do Paraná provocaram a dizimação do povo Xetá por intoxicação alimentar, envenenamentos, doenças infectocontagiosas como gripe, sarampo e pneumonia, extermínio com armas de fogo e queimas de aldeias, rapto de crianças. Estimados em 400 indivíduos distribuídos pela Serra dos Dourados, foram considerados extintos a partir da década de 1960.[4]

Os Tupari, habitantes da região do Ji-Paraná, também viram sua população, na passagem dos últimos anos de 1940 para meados da década de 1950, diminuir de 400 para 66 pessoas, conforme relato do etnólogo suíço Franz Caspar[5].

Não é raro nos depararmos com registros de “vazios demográficos” em mapas ou relatos oficiais para justificar argumentos para o confisco de terras, o deslocamento de populações, sua marginalização e eventual aniquilação. De fato, ao longo da primeira metade do século passado, o decréscimo populacional parecia inexorável, sem condições para uma reversão que permitisse acreditar na sobrevivência autônoma da maioria dos povos. Darcy Ribeiro mostrou que, entre 1900 e 1957, mais de 80 etnias haviam sido contatadas pela sociedade envolvente e foram afetadas por etnocídio e epidemias. Em meio século, ele calculou, a população indígena caiu de 1 milhão de indivíduos para 200 mil. Os Kaingang foram reduzidos de 1.200 para 87 indivíduos; os Xokleng de 800 passaram a menos de 190; os Nambikwara estimados em 10 mil experimentaram queda populacional vertiginosa até serem menos de 1.000 indígenas; os Tembé e os Timbira que, em censo de 1872 figuravam entre 6 a 7 mil pessoas, contavam em 1957 menos de 60 pessoas em três aldeias. (Ribeiro, 1957)

 

Desenvolvimentismo e extermínio indígena

Documento fundamental para a compreensão dos ataques, esbulhos e toda a sorte de violações à vida e direitos dos povos indígenas durante esse período consiste no relatório elaborado em 1967 pelo procurador federal Jader Figueiredo Correa. O Relatório Figueiredo, como ficou conhecido, apresenta, em seus 30 volumes, situações de regime de escravidão, venda de crianças indígenas, torturas, suplícios, sevícias, espancamentos de homens, mulheres e crianças, inoculação de patógenos mortais em etnias, em uma longa lista de atos, cometidos por agentes do Estado, que se igualam aos piores genocídios registrados.[6]

Dois anos depois da divulgação do Relatório Figueiredo, em pleno governo militar que impunha severa censura aos órgãos de imprensa e controle na movimentação de organismos estrangeiros vinculados a direitos humanos, uma delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, chefiada por Serge Nessi, delegado geral da Cruz Vermelha para a América Latina, veio ao Brasil com a missão oficial de “fazer um levantamento para verificar qual a assistência que o índio necessita” e apurar possíveis violências e atrocidades contra presos políticos e indígenas. A preparação da missão teve ampla cobertura da imprensa, contudo somente um jornalista do Ministério do Interior foi autorizado a acompanhar a viagem e os integrantes estavam proibidos de dar entrevistas. O relatório da viagem da delegação da Cruz Vermelha, que durou três meses, apesar de afirmar que não iria tratar de questões relacionadas a genocídio, apontou o rápido declínio populacional motivado por epidemias e doenças e a necessidade de um programa de demarcação de terras indígenas e de controle de contato com a sociedade nacional. Todavia, apesar das conclusões preocupantes, o fim dos trabalhos da Cruz Vermelha foi noticiado pela imprensa com as seguintes manchetes: “Cruz Vermelha conclui: não há massacre de índios no Brasil” (Diário de Notícias, 24/02/1971); “Cruz Vermelha diz que não há matança de índio no Brasil” (Jornal do Brasil, 25/02/1971); “Cruz Vermelha desmente massacre de índios” (Correio da Manhã, 23/02/1971) [7].

Uma política de promoção de crescimento econômico e integração nacional, iniciada também na década de 1960, baseada, entre outras frentes, em abertura de estradas, projetos de colonização, levantamentos de áreas para exploração mineral, atingiu implacavelmente territórios indígenas.[8] A abertura da rodovia Brasília-Acre[9], por exemplo, era noticiada como a possibilidade de acesso às regiões ocidentais e setentrionais do Brasil, acendendo “novas esperanças no espírito das populações esquecidas e abandonadas, nos vastos territórios de Rondônia e do Acre; nos confins do Mato Grosso e até das áreas desconhecidas e opulentas do alto Amazonas. É outra via de ocupação efetiva do território brasileiro desbravando o oeste, rasgando em outro rumo a selva amazônica, despertando riquezas adormecidas e libertando populações da miséria ou do subdesenvolvimento.”[10]

O Massacre do Paralelo 11, como ficou conhecido o ataque contra os Cinta Larga empreendido pelo encarregado da empresa Arruda e Junqueira Cia. Ltda., ocorreu em novembro de 1963. Os indígenas receberam alimentos misturados com arsênio e roupas contaminadas com vírus de gripe e varíola, e foram metralhados, além de terem seus territórios dinamitados. Apesar da gravidade desse crime, quando morreram cerca de 3.500 Cinta Larga, até meados dos anos 1970 ninguém havido sido julgado.[11] Mesmo após a criação do Parque do Aripuanã, em 1969, que abrigaria, principalmente, as etnias Cinta Larga, Suruí, seringueiros, garimpeiros e mineradoras continuaram invadindo a área e praticando violações aos direitos e à integridade desses povos.[12]

Com base em dados da Comissão Nacional da Verdade-CNV, Helena Palmquist afirma que a ditadura de 1964-1985 constituiu provavelmente o período mais mortal para os povos indígenas brasileiros ao longo do século XX: o despejo do povo Parakanã pela Hidrelétrica de Tucuruí; a saga dos Guarani Kaiwá ao longo de décadas de roubo de terras, assassinatos e constantes deslocamentos; a quase extinção dos Xavante de Marãiwatsédé para atender aos desejos dos proprietários da fazenda Suiá-Missú; os Avá-Guarani, despejados sem trégua para dar lugar à Hidrelétrica de Itaipu; os Nambikwara de Rondônia, acossados pela construção da rodovia Cuiabá-Porto Velho, assolados por sarampo e por desfolhantes químicos; dos Tapayuna, vítimas de envenenamento e armas de fogo; os Arara em fugas causadas pela abertura da rodovia Transamazônica; os Panará que, em 1973, em função da rodovia Cuiabá-Santarém, perderam 2/3 de sua população[13]; os Waimiri-Atroari[14] vítimas das forças militares repressivas por ocasião da construção da rodovia Manaus-Boa Vista e da instalação de empresa de mineração e da Usina Hidrelétrica Balbina são alguns exemplos. (Palmquist, 2018). [15]

Segundo cálculo da CNV, pelo menos 8.341 indígenas foram dizimados em massacres, epidemias e fomes. A própria repressão aos movimentos considerados subversivos pelo governo militar incidia e colocava em risco populações indígenas, como registra o Relatório da CNV, volume 1, na parte dedicada à Guerrilha do Araguaia.[16]

O Plano de Integração Nacional, lançado em 1970; o Projeto Polamazônia, instituído no governo do general Ernesto Geisel; o projeto RADAM de mapeamento e inventário dos recursos naturais; o Programa de Desenvolvimento Integrado para o Noroeste do Brasil – Polonoroeste com o objetivo de absorver o fluxo migratório de maneira coordenada e sustentável e concluir o asfaltamento da BR-364; o Plano 2010 elaborado pela Eletrobras na década de 1980 para instalação de usinas hidrelétricas na região amazônica[17]; o Projeto Calha Norte que previa a construção de uma vasta infraestrutura para o assentamento de colonos brasileiros e a instalação de projetos minerais na zona de fronteira internacional visando a hegemonia geopolítica da região amazônica; todas essas iniciativas gestadas durante o período da ditadura militar configuraram um cenário de intervenção em terras indígenas com consequências percebidas até os dias de hoje. De alguma forma, elas ainda se repetem, apesar de todo o conhecimento acumulado sobre a gravidade de ações desenvolvimentistas que consideram as populações tradicionais obstáculos a serem removidos e seus territórios “vazios demográficos” a serem ocupados. Na Informação nº 205/117/ACG/81 o deputado pelo estado do Mato Grosso, Dante Martins de Oliveira, alertava para o risco de genocídio dos Nambikwara diante da construção da BR-174.

“O parlamentar disse acreditar que o encurtamento de alguns quilômetros na extensão da rodovia seja menos importante que a preservação da vida dos grupos indígenas na região, ‘os quais já vêm sendo dizimados pelo próprio meio, confinados que foram a uma reserva de terras estéreis e improdutiva na sua maior extensão, dando lugar a implantação de projetos agropecuários, face a criminosa complacência da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI), fornecendo certidões inverídicas, asseverando a não existência de índios nas terras pretendidas e conseguidas pelos grupos interessados’.”[18]

Mesmo após o fim do regime militar, planos de desenvolvimento aparentemente mais conscientes dos direitos indígenas, a exemplo do I Plano de Desenvolvimento da Amazônia na Nova República 1986-1989, elaborado pelo Ministério do Interior-SUDAM, que propunha um plano de desenvolvimento economicamente viável, socialmente justo e ecologicamente correto, harmonizando as finalidades socioeconômicas do desenvolvimento com aspectos ecológicos, enfrentaram resistência. O Conselho de Segurança Nacional - CSN avalia que o I PDA apresenta “diretrizes dolosas contra a integridade do Território Nacional” ao “respeitar as sociedades indígenas e as suas formas próprias de organização social, econômica, política cultural, assegurando a posse das terras que ocupam e o direito ao usufruto, exclusivo, das riquezas naturais do solo e do subsolo nelas existentes.” O documento do CSN conclui pela necessidade de contatos com o ministro do Ministério do Interior “alertando para os graves riscos para a Segurança Nacional que poderão ser gerados pelas diretrizes do I PDA-NR sobre a questão indígena, e solicitando a correção do referido documento”.[19]

 

Genocídio indígena após a ditadura

Dos diversos casos de violações dos direitos dos povos indígenas, dois foram judicializados como genocídio: o massacre da “Boca do Capacete”, envolvendo indígenas da etnia Tikuna, da região do Alto Solimões, no Estado do Amazonas[20], e a Chacina de Haximú, que atingiu os Yanomami, situados no Estado de Roraima. Ambos podem ser descritos como chacinas, emboscadas com execuções, sem que houvesse um conflito aberto naquele momento, ou sem que os indígenas tivessem resistido de alguma forma.

O massacre do Capacete aconteceu no dia 28 de março de 1988 e provocou a morte e desaparecimento de jovens, adultos, idosas e crianças, da etnia Tikuna das aldeias Porto Espiritual, Porto Lima, Bom Pastor e São Leopoldo, por pessoas ligadas à família Castelo Branco, constituída por madeireiros, garimpeiros e políticos.[21]

A exploração do garimpo de cassiterita, ouro e outros minérios, juntamente com a abertura da Rodovia Perimetral Norte (BR-210) que cortou o território Yanomami ao sul, favoreceu a penetração maciça de intrusos na região e imediações, bem como empresas agropecuárias, grupos extrativistas. A invasão por grupos de garimpeiros, incitados por José Altino Machado, nas áreas do Mucajaí e Serra de Surucucus, foi responsável pela morte de 13% da população Yanomami. De meados de 1987 a janeiro de 1990, auge da corrida do ouro, estima-se que cerca de mil Yanomami tenham morrido, principalmente, por doenças como a malária.

“No Paapiú, 43% das pessoas perderam de um a dez parentes próximos. Comunidades inteiras foram devastadas pelas ondas contínuas de epidemias de malária, e os poucos sobreviventes viram-se obrigados a se asilar com parentes distantes, muitas vezes em tensas condições sociais” (Ramos, 2018, p.27)

O número de garimpeiros e pessoas ligadas à atividade extrativa foi crescendo até cerca de 45 mil em 1990, quando então o escândalo do morticínio Yanomami chegou à imprensa nacional e internacional e o governo federal se viu obrigado a dar satisfações. Em carta endereçada ao presidente José Sarney, em 31 de março de 1988, um grupo de senadores demanda providências para cessar as atividades ilegais de garimpo na T.I. Yanomami:

“Se recorremos a Vossa Excelência com tanta ênfase, Senhor Presidente, é por acreditarmos não ser demasiadamente tarde para que o Governo ao mesmo tempo recupere sua autoridade desafiada pelos garimpeiros invasores, e contenha o processo genocida que levaria ao desaparecimento da última etnia isolada de nosso País e, com certeza, do mundo.”[22]

 Em 1993, ocorreu o massacre do Haximu. Dezesseis Yanomami, mulheres e crianças em sua maioria, foram executados a facão e armas de fogo num acampamento da mata próximo à aldeia Haximu, na fronteira entre o Brasil e a Venezuela.[23]

Dentre as conclusões do Relatório de Missão ao Brasil da Organização Internacional do Trabalho  (20 a 29/09/1989), coordenada por Lee Swepston do Departamento de Normas Internacionais do Trabalho, de Genebra, que visitou áreas indígenas na Amazônia, dentre elas as terras Tikuna, Waimiri-Atroari e Yanomami, consta:

“Atividades não planejadas em áreas indígenas, em particular a invasão de garimpeiros e o assentamento de não-índios em áreas indígenas em outras partes do país (não examinados nesta missão), criam situações de emergência que são mais difíceis para controlar. Como visto acima, a FUNAI não tem poderes policiais ou recursos. O que preocupa é que nenhuma agência do Governo parece querer agir por sua própria conta para proteger os índios de atividades ilegais que constituem o que a própria FUNAI chamou de genocídio. Esta relutância é tão marcante que coloca a existência contínua de muitos destes índios em perigo. Equivale a uma decisão deliberada, de todos os órgãos governamentais envolvidos, mas especialmente os militares, de não agir a não ser que recebam ordem de um tribunal para fazê-lo.”[24]

Outras moções de apoio aos indígenas atingidos foram elaboradas, em especial aos Yanomami que viviam uma tragédia que só poderia ser minorada com a retirada dos garimpeiros das áreas tradicionalmente ocupadas, a interdição das pistas de pouso clandestinas, a elaboração e execução de projetos para a recuperação ambiental, a demarcação contínua de toda a área. Cabe ressaltar que a execução dessas medidas encontrava forte resistência por parte de setores das empresas envolvidas, assim como de autoridades de governo, a exemplo do governador do Estado de Roraima, Romero Jucá Filho, que, no telex encaminhado ao ministro da Justiça, expressava sua apreensão quanto à retirada dos garimpeiros ilegais da área Yanomami e seu destino.

 

“Preocupado com as repercussões que tal medida possa causar sobre a população deste Estado e de sua incipiente base econômica, gostaria de lembrar que este governo vem de algum tempo lutando pela adoção de providências orientadas no sentido de organizar o garimpo em Roraima, encontrando formas adequadas de convivência entre mineradoras, garimpeiros e índios e levando a efeito um processo de controle que garantisse o atendimento às necessidades de desenvolvimento que se busca instalar nesta nova unidade da Federação brasileira. Preocupa-me a forma pela qual os garimpeiros serão retirados abruptamente de seus locais de trabalho, causando incontáveis prejuízos a tantas famílias que hoje sobrevivem às custas dessa atividade.”[25]

 

Mesmo demarcada, a T.I. Yanomami esteve e ainda está invadida por garimpeiros ilegais em conflitos constantes com os indígenas que levaram a mortes. A prática dessa atividade ilegal produz efeitos sanitários e ecológicos gravíssimos. Em 1990, a Polícia Federal mobilizou 300 policiais na operação Selva Livre para remover garimpeiros ilegais e destruir pistas de pouso ilegais. Àquela época, após 72 dias de operação, foi contabilizada a remoção de 9.971 garimpeiros e estimou-se que 10.000 haviam saído espontaneamente. A operação e seus impasses receberam a atenção da imprensa que noticiava: “Governo perde controle de reserva ianomami” (ESP, 14/06/1989); “Entidades discutem regulamentação do garimpo em área dos ianomami” (Folha SP, 25/06/1989); “Garimpeiros fretam aviões para recuperar equipamento” (JB, 11/05/1989)[26].

 

Persistências/Permanências

Os debates e manifestações sobre as persistentes violações aos direitos dos povos indígenas se sucederam, com mobilizações de organizações internacionais como a ONU.

O documento final do IV Tribunal Bertrand Russel, realizado em novembro de 1980 e que teve como presidente a liderança xavante Mario Juruna, relaciona como situação de genocídio no Brasil os povos Nambikwara, Yanomami e Waimiri-Atroari.[27]

Em 1982 foi criado um Grupo de Trabalho da ONU sobre Populações Indígenas com a tarefa de desenvolver ações internacionais sobre os direitos indígenas encarregado de elaborar um estudo, coordenado por José Martínez Cobo, que enfatizou a necessidade de atenção urgente e especial a casos de destruição física de comunidades indígenas (genocídio) ou à destruição de culturas indígenas (etnocídio).

Em outubro de 1990 o Tribunal Permanente dos Povos – Sessão Amazônia Brasileira se reuniu em Paris para avaliar as responsabilidades das violações que resultaram em massacre e dizimação de numerosos grupos indígenas, cada qual com uma individualidade definida e diferenciada. Dentre as 17 recomendações feitas pelo Tribunal, destaca-se aquela dirigida ao Poder Executivo e ao Ministério Público dos Estados para que “promovam a punição efetiva e rápida dos responsáveis diretos e indiretos, por atos que configuram o extermínio coletivo, como os que vêm acarretando a morte rápida de grande número dos Yanomami e de outros grupos indígenas”. [28]

 

O relatório “A violência contra os povos indígenas no Brasil em 1993”, elaborado pelo CIMI, relaciona e estima as diferentes modalidades de agressão à pessoa e ao patrimônio constatando que “as agressões não são fatos isolados, mas determinam o rumo da vida dos povos indígenas.”[29]

Durante os debates para a construção da Declaração de Direitos dos Povos Indígenas, em 1994, especialistas e lideranças indígenas incluíram a referência ao genocídio cultural ou etnocídio como merecedor de inclusão como um crime internacional. A proposição encontrou forte oposição de não-indígenas envolvidos na discussão e o tema acabou retirado da declaração nos estágios finais entre a reunião do Conselho de Direitos Humanos e a Assembleia Geral das Nações Unidas que aprovou o texto final, em 2006 e 2007. O silêncio da Convenção para a prevenção e a repressão ao crime de genocídio, genocídio cultural ou outra forma de destruição cultural suscitou o emprego de denominações diversas para as violências aos povos indígenas como indiocídio, etnocídio, genocídio cultural, genocídio colonial, genocídio extensivo, ecocídio. Essas variantes atenuam ou resultam na desqualificação do crime uma vez que não se identificam como genocídio “físico”, a despeito de o resultado ser a dizimação e o desaparecimento de um povo. (Cruz, 2021, p.144)

Finalizo o presente texto com algumas perguntas propostas pelo professor de História do Direito, Bartolomé Clavero:

“Por que políticas que são danosas para línguas e outras dimensões culturais de grupos humanos específicos não são consideradas genocidas, ainda que claramente objetivem causar o desaparecimento do grupo enquanto tal? Basta se olhar para as políticas que são frequentemente até hoje aplicadas a povos indígenas. (…) Como políticas de captura de terras e tomada de recursos, que afetam severamente a própria sobrevivência de povos indígenas, não são consideradas genocídio?” (Clavero apud Palmquist, 2018, p.49)

 

 AS REFERÊNCIAS DAS IMAGENS ESTÃO INCORPORADAS NAS NOTAS AO LONGO DO TEXTO

 BIBLIOGRAFIA CLIQUE AQUI

 

[1] CLASTRES, P. Arqueologia da violência – pesquisas de antropologia política. Trad. Theo Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 79.

[2] O novo órgão foi criado na estrutura do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio por meio do Decreto 8.072 de 20 de junho de 1910 com o objetivo de sistematizar a proteção aos índios e prescrever regras para a localização dos trabalhadores nacionais, cabendo, assim, à República salvar as populações indígenas do extermínio. (Ver Gagliardi, 1989)

[3] Em 1971, reuniu-se em Barbados um grupo de antropólogos e indigenistas com o objetivo de discutir o indigenismo oficial e apresentar posições face ao processo de etnocídio sofrido pelos povos indígenas do continente americano. Participaram dessa primeira reunião: Miguel Alberto Bartolomé, Guillerme Bonfil Batalla, Víctor Daniel Bonilla, Gonzalo Castillo Cárdenas, Miguel Chase‐Sardi, Georg Grünberg, Nelly Arvelo de Jiménez, Esteban Emilio Mosonyi, Darcy Ribeiro, Scou S. Robinson, Stefano Varese. Declaração de Barbados I - Pela libertação do indígena. Disponível em http://www.missiologia.org.br/wp-content/uploads/cms_documentos_pdf_28.pdf.

[4] Ver Relatório da Comissão Nacional de Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. V. 2, p.223-225. http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_2_digital.pdf

[5] Franz Caspar (1916-1977) desenvolveu seus estudos entre os Tupari de Rondônia entre 1940 e 1950 e escreveu o livro Tupari: entre os índios, nas florestas brasileiras, publicado em português em 1958.

[6] As violências brutais contra povos indígenas estão registradas em mais de 7.000 páginas, causando forte impacto político e justificando mesmo a extinção do SPI, substituído então pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Disponível em https://www.ufmg.br/brasildoc/temas/5-ditadura-militar-e-populacoes-indigenas/5-1-ministerio-do-interior-relatorio-figueiredo/

[7] Pedido de assistência aos silvícolas, 1970. Arquivo Nacional, fundo Assessoria de Segurança e Informações da FUNAI. DFANBSB_AA3_0_DAI_0006_d0001de0001.pdf

[8]  BR RJANRIO HA.0.ICN.26(1)

[9] Arquivo Nacional. Fundo Agência Nacional, série Presidente da República. BR_RJANRIO_EH_0_FOT_PRP_05124_d0004

[10] Cinejornal "Caminho da Libertação", sobre a Rodovia Brasília-Acre. Cinejornal Informativo nº 6/60. Fundo Agência Nacional. BR_RJANRIO_EH_0_FIL_CJI_226_0001

[11] Ver Massacre dos índios Cinta Larga no rio Aripuanã, 1980. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informações. BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_MMM_80000851_d0001.pdf

[12] Ver Situação do Parque Indígena do Aripuanã – PQARI, 1971. Arquivo Nacional. Fundo Assessoria de Segurança e Informação da FUNAI. BR_DFANBSB_AA3_0_DAI_0017_d0001

[13] Os Panará, ou Kreen-Akarore, foram transferidos em 1975 para o Parque do Xingu, ao lado dos seus inimigos tradicionais, os Txukahamãe, quando restavam apenas 76 pessoas dos índios "gigantes".

[14] Ver relatório “A guerra contra os Waimiri Atroari” elaborado por Egydio Schwade, do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, em BR_RJANRIO_CNV/0/VDH/00092000402201517 e BR_RJANRIO_CNV_0_VDH_00092000402201517_d0001de0001.pdf

[15] Ver também Terras Indígenas e Desenvolvimento: um falso impasse. Disponível em Territórios indígenas (an.gov.br)

[16] Ver CNV. Vol. I, Parte IV, capítulo 14, C – camponeses e indígenas. Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/documentos/Capitulo14/Capitulo%2014.pdf

[17]  BR RJANRIO HA.0.ICN.26(2)

[18] Parlamentar do Mato Grosso teme genocídio dos índios Nambikwara, 1981. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação. BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_MMM_81001795_d0001

[19] Memória nº 111/3ªSC/86 – Correção no I PDA/NR (MINTER) no que se refere à questão indígena. Arquivo Nacional, fundo Estado maior das forças armadas. BR_DFANBSB_2M/0/0/0144_v_12/BR_DFANBSB_2M_0_0_0144_v_12_d0001de0001.pdf, página 79

[20] Negreiros, Ismael da Silva. O Massacre de Capacete: narrativa, memória e história Tikuna no município de Benjamin Constant, Amazonas. Universidade Federal de Pelotas, 2018. Dissertação de mestrado. Disponível em http://guaiaca.ufpel.edu.br:8080/handle/prefix/4306.

[21] Massacre de índios Tikuna, Benjamin Constant/AM. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação. BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_LLL_88007444_d0001.pdf

[22] Proc. nº 71041/89. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação. BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_89071041_d0001.pdf, p. 34

[23] Proc. nº 6899/87.Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação. BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_LLL_87006899_d0001.pdf

[24] Operação Yanomami, v. IX, 1987. Arquivo Nacional. Fundo ASI/FUNAI. BR_DFANBSB_AA3_0_DTI_DTR_0119_d0001de0001, p.24. O documento não pode ser inserido na íntegra por ser muito extenso.

[25] Telex do governador do Estado do Roraima ao ministro da Justiça em 13/12/1989. Idem, p.176

[26] Posição do governo de Roraima sobre a questão garimpeira. Arquivo Nacional. Fundo Estado Maior das Forças Armadas. BR_DFANBSB_2M_0_0_0143_v_05_d0001de0001.pdf

[27] Conclusões do IV Tribunal Russel sobre os direitos dos povos indígenas das Américas. BR_RJANRIO_CNV/0/VDH/00092000402201517/BR_RJANRIO_CNV_0_VDH_00092000402201517_d0001de0001.pdf LINK EM A “GUERRA CONTRA OS WAIMIRI ATROARI”, NOTA 14

[28] Tribunal Permanente dos Povos – Sessão Amazônia Brasileira, Paris, 12-15 outubro 1990 (p.1-42) BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092000402201517

[29] Arquivo Nacional. Fundo Estado maior das forças armadas. BR_DFANBSB_2M/0/0/0144_v_12/BR_DFANBSB_2M_0_0_0144_v_12_d0001de0001.pdf, página 9

Todo o conteúdo deste site está publicado sob a licença  Creative Commons Atribuição-SemDerivações 3.0 Não Adaptada.