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Acadêmicos cariocas versus Força Policial -DF

 por Vera Lúcia Bogéa Borges [1]

Em setembro de 1909, a cidade do Rio de Janeiro foi marcada por um emblemático acontecimento: a Primavera de Sangue. Em países vizinhos como Argentina e Chile, tradicionalmente, o início da estação do ano conhecida como Primavera era celebrada por estudantes que costumavam realizar atividades ao ar livre sendo o piquenique uma das mais representativas. Com o passar do tempo, simultaneamente, os jovens de muitas capitais latino-americanas passaram a comemorar a data e procuraram sempre aproveitar a ocasião para realizar algum tipo de protesto. Desde a primeira década republicana, entre os acadêmicos do Distrito Federal, quando uma pessoa ganhava aversão do grupo era simbolicamente enterrada, o que consagrou a expressão morrer por ridículo. Em 1909, os estudantes cariocas organizaram uma passeata que ganhou um colorido diferente com o enterro político do General de Brigada Antônio Geraldo de Souza Aguiar, comandante geral da Força Policial do Distrito Federal.  O cortejo fúnebre foi preparado nos mínimos detalhes e todos os elementos estavam presentes, isto é, a cruz sendo carregada, o padre a comandar a celebração e as inúmeras vozes entoando os cantos. A manifestação terminou em sangue tendo o saldo de duas vítimas fatais.

Afinal, o que o chefe da polícia do Distrito Federal fez para ser alvo da zombaria dos acadêmicos do Rio de Janeiro? Em 1909, por mais de uma vez, o general Souza Aguiar teve seu nome associado a atos de violência como, por exemplo, por ocasião da dispersão da população que foi espancada pelos soldados da Força Policial ao ocupar as ruas da cidade reivindicando melhores serviços prestados pelos bondes da Light. Outro episódio truculento ocorreu na véspera da chegada da primavera, em 21 de setembro, quando os acadêmicos concentraram-se no Palácio Monroe (Cinelândia, centro do RJ). Na ocasião, eles percorreram várias ruas para lembrar, de maneira ruidosa, pessoas e fatos da época e, também, acabaram por zombar dos transeuntes impedindo o deslocamento dos carros que circulavam pelos arredores. Assim, o trânsito ficou tumultuado e, cada vez mais, os ânimos das pessoas exaltaram-se. Na rua Senador Dantas, um veículo da Força Policial com tração animal transportando músicos desobedeceu a ordem de parar dada pelos manifestantes e seu condutor ao chicotear os cavalos permitiu que a carroça fosse de encontro ao grupo. Para piorar a situação, o acadêmico Pedro Barreto também foi atingido por uma das chicotadas. Imediatamente, os manifestantes foram tirar satisfação com o comandante da Força Policial. Ao ser informado do incidente, Souza Aguiar não deu importância ao fato e, ao final da audiência com os estudantes, considerou que a culpa era deles uma vez que provocavam regularmente, de acordo com sua interpretação, desordens pela cidade. Os jovens não ficaram quietos e disseram que iriam se queixar direto ao presidente República Nilo Peçanha. Souza Aguiar pareceu não se intimidar e ainda teve fôlego para dar um safanão num acadêmico, jogando-o num sofá próximo. O clima de animosidade entre as partes estava estabelecido.

No dia seguinte, em 22 de setembro de 1909, o início da primavera deveria marcar a chegada da estação das flores, das cores mais variadas, de intensos e diversos perfumes. Todavia, a alegria e o colorido esperados foram substituídos pelo sangue e pela dor motivada pelas mortes dos estudantes José de Araújo Guimarães – aluno do primeiro ano de Medicina que tinha 17 anos e ocupava o cargo de 2º secretário do Centro Acadêmico – e Francisco Ribeiro Junqueira que ainda foi transportado com vida para a Santa Casa de Misericórdia aonde veio a falecer devido um ferimento no peito. Na ocasião, o desfecho trágico com vítimas fatais ecoou pela cidade agitando a imprensa, mobilizando as autoridades públicas e a população em geral. Afinal, quais foram as condições que levaram a morte dos dois rapazes? Indignados com a intolerância do comandante Souza Aguiar no dia anterior, os jovens organizaram uma marcha que simulou de maneira simbólica o enterro político dele com direito as figuras do padre e seu assistente. A caminhada foi acompanhada por centenas de estudantes e teve seu ápice no Largo de São Francisco de Paula, centro da cidade do Rio de Janeiro, quando surpreendentemente alguns indivíduos investiram contra o grupo com extrema violência, atingindo mortalmente o padre, seu assistente e provocando ferimentos em inúmeros outros. O drama pareceu devastar a cidade do Rio de Janeiro. A gigantesca demonstração de pesar público foi observada pelas ruas da capital da República, desde a Escola de Medicina até o cemitério São João Batista (bairro de Botafogo). A manifestação foi espontânea tendo enorme proporção jamais vista pela população carioca. Imediatamente, Souza Aguiar foi exonerado e o comando da Força Policial do Distrito Federal passou a ser exercido por Gregório Thaumaturgo de Azevedo que ao ser nomeado redigiu um ofício ao Ministro da Justiça, Esmeraldino Olympio Torres Bandeira. No documento, o novo comandante considerava necessária a abertura de inquérito para verificar a possível responsabilidade de oficiais e praças da Força Policial do Distrito Federal.

Em cumprimento da ordem expressa do presidente da República Nilo Peçanha, acrescida pela repercussão no meio jornalístico, foi estabelecido rigoroso inquérito. Os advogados de acusação eram Mario Viana, Teodoro Magalhães e Evaristo de Moraes, equipe que teve muita dificuldade em submeter os réus a julgamento, fato que só ocorreu quase um ano depois do crime. Por sua vez, a defesa era representada por Nicanor Nascimento e Caio Monteiro de Barros e a presidência do julgamento coube ao juiz Machado Guimarães que contou ainda com a participação do promotor público Honório Coimbra. A atmosfera em torno do caso era de terror e os boatos iam do possível assalto ao tribunal por colegas de Exército do tenente João Aurélio Lins Wanderley, principal suspeito, até as ameaças de morte aos jurados caso a sentença fosse desfavorável ao réu mais notável. Assim, aqueles que estavam envolvidos no caso pareciam correr risco de vida sendo que inúmeras medidas de prevenção e precaução foram adotadas no dia do julgamento. No final da sessão todos os réus foram condenados uma vez que se comprovou que, em relação à manifestação dos acadêmicos, os agressores eram praças à paisana subordinados ao comandante da Força Policial do Distrito Federal, Souza Aguiar. Além disso, o inquérito comprovou a responsabilidade de alguns oficiais do Regimento da Cavalaria e muitos soldados que receberam a pena máxima de trinta anos. Neste sentido, o relatório de Thaumaturgo de Azevedo enviado ao ministro da Justiça Esmeraldino Bandeira apresentou a lista nominal dos oficiais exonerados em função do incidente. (IJ6.356, IJ6.356 (2), IJ6.356 (3), IJ6.356 (4), IJ6.356 (5), IJ6.356 (6), IJ6.356 (7)).

Todavia, o desfecho da primavera de Sangue avançou por 1910 e a decisão do caso provocou reações imediatas sendo que alguns segmentos da sociedade protestaram por novo julgamento. Em linhas gerais é possível considerar que o Clube Militar e muitos militares queriam a absolvição do tenente Wanderley, pois consideravam o desfecho contrário podia ser perigoso para o país de acordo com a percepção deles. Apesar de mais uma atuação brilhante da acusação, o réu principal do caso foi finalmente absolvido e o fato foi comemorado entre seus pares. Desta forma, na cidade do Rio de Janeiro, dois campos opostos pareciam se formar, de um lado pelos estudantes e simpatizantes da manifestação estudantil de setembro de 1909, os civis, e de outro lado, os militares, aqui representados por intermédio da Força Policial, pelo lado legalista. Esta instituição militar, sob o comando de um oficial do Exército, parecia sacrificar inicialmente um dos seus ao permitir que apenas o tenente Wanderley fosse responsabilizado pelo episódio da Primavera de Sangue. Portanto, sua absolvição tornou-se questão de honra, uma vez que a negativa poderia, pela ótica militar, ser danosa à sociedade. Os militares não mediram esforços para absolver – o que não significou inocentar – o culpado maior junto com seus auxiliares. Por sua vez, as famílias dos dois acadêmicos mortos, além da dor motivadas pelas perdas, tiveram que conviver com a sensação de impunidade do(s) responsável(is). É importante destacar que o uso da farda atribuída aos militares garantia a sua condição de autoridade que devia ser exercida dentro de determinados padrões de convívio garantindo o direito de manifestação do cidadão, inclusive o da crítica como aconteceu no enterro político de Souza Aguiar, em setembro de 1909. Com certeza o relatório do chefe da Polícia, direcionado ao ministro Esmeraldino Bandeira, (Ij6.386, Ij6.386(2), Ij6.386(3), Ij6.386(4), Ij6.386(5))  pode ser compreendido como demonstração da tensão entre civis e militares na cidade do Rio de Janeiro naqueles anos da Primeira República.

Com o advento do século XX, a República brasileira parecia ter superado os momentos iniciais de instabilidade dos dois governos militares (presidentes Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto). Neste sentido, em termos econômicos, o café valorizava-se e na política, até a administração do presidente Afonso Pena, os grupos dominantes conseguiam, dentro do possível, estabelecer algum tipo de entendimento com a apresentação de um candidato único para as eleições presidenciais. Entretanto, em 1909, a morte do presidente Afonso Pena no mês de junho e sua substituição pelo vice-presidente Nilo Peçanha agitou o cenário político. Para a sua sucessão, vários nomes foram cogitados até que se apresentassem as duas candidaturas que se enfrentaram em 1910, isto é, Hermes de Fonseca (militar) e Rui Barbosa (campanha civilista).  Contudo, por que essa polarização passou a existir? A resposta para a questão não é simples e alguns elementos podem contribuir para a compreensão daquele processo histórico. A tentativa frustrada de imposição por parte de Afonso Pena de fazer seu sucessor levou a uma reação contrária imediata. Deste modo, constantemente, o presidente exigia que seu ministro da Guerra, Hermes da Fonseca, se manifestasse publicamente como não candidato à presidência da República o que acabou por provocar um fato militar. Essas ações políticas eram devidamente acompanhadas pela imprensa como, por exemplo, demonstra a primeira página da Gazeta de Petrópolis na edição de 6 de maio de 1909  (TribunaON)  As Forças Armadas sentiam-se hostilizadas por considerarem cerceadas ao aspirar que um militar ocupasse o cargo de presidente da República, afinal a Constituição de 1891 não estabelecia qualquer incompatibilidade.. No entanto, logo sepultada a iniciativa presidencial, passou-se à etapa da polarização e apesar das tentativas, São Paulo e Minas Gerais não conseguiram juntos lançar um nome para a eleição presidencial. Assim, parte dos mineiros e uma parcela dos paulistas apoiou David Campista (ministro da Fazenda no governo Afonso Pena), por sua vez, outra parte da oposição conseguiu indicar o nome de Wenceslau Brás à vice-presidente na chapa de Hermes da Fonseca. A quebra da tradicional aliança levou São Paulo a buscar mais espaço político. Com o passar do tempo, Rui Barbosa formou uma chapa contestatória procurando garantir a adesão de São Paulo levando a consolidar a indicação do paulista Albuquerque Lins como candidato a vice-presidente na coligação civilista. Outros políticos também se destacavam naquele momento como, por exemplo, o senador Pinheiro Machado (1851-1915) que atuou intensamente na cena política nacional ao fundar o Partido Republicano Conservador (PRC) e ocupar o cargo de vice-presidente do Senado entre os anos de 1902 e 1905. Toda a movimentação na cena política brasileira era diariamente acompanhada pela imprensa como demonstram as duas edições do mês abril de 1909 dos jornais cariocas Gazeta de Notícias e Jornal do Brasil (ON.JRC.51 e ON.JRS.48.6.74).

No segundo semestre de 1909, enquanto os candidatos à presidência da República, Hermes da Fonseca e Rui Barbosa, percorriam algumas das capitais do país em campanha eleitoral, o concorrente civilista recebeu uma carta de Francisco Ribeiro Junqueira, avô do acadêmico Francisco Pedro Ribeiro Junqueira, uma das vítimas fatais no episódio da Primavera de Sangue. De acordo com o remente da missiva, seu neto caiu assassinado pela polícia militar do Brasil e o discurso de Rui Barbosa proferido no Senado lembrando as cenas de setembro de 1909 foi decisivo para a manifestação de apoio dele e de seu município (Vila de Silvestre Ferraz, São Lourenço, MG) na eleição presidencial que se aproximava. Portanto, um cidadão do interior do Brasil, que não se considerava um militante político, não poupou críticas à ação militar violenta que vitimou seu neto e concordava com Rui Barbosa que o perigo militar futuro estava associado a vitória Hermes da Fonseca, militar de formação e o favorito no pleito que estava para se realizar. Por fim, vale destacar que as tensões entre civis e militares não eram algo circunscrito à batalha eleitoral de 1910, mas estavam presentes no cotidiano carioca como exemplificou o episódio da Primavera de Sangue ocorrido em setembro de 1909.

 

Referências

Documentos do acervo do Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)

- Fotografia do Palácio Monroe, Rio de Janeiro, 1909. ANRIO_O2_0_FOT_0441_013

- Gazeta de Notícias. Coluna Politiquices. Edição de 2 de abril de 1909. ANRIO.ON.JRC.51

- Jornal do Brasil. Coluna da Semana Política. Edição de 5 de abril de 1909. ANRIO.ON.JRS.48.6.74

- Ofício do Sr. Gregório Thaumaturgo de Azevedo (comandante geral da Força Policial do Distrito Federal, de 24 de setembro de 1909, direcionado ao então ministro da Justiça, Sr. Esmeraldino Olympio Torres Bandeira.) ANRIO.IJ6.354

- Relatório de Thaumaturgo de Azevedo, comandante geral da força policial do D.F, apresentado ao Ministro da Justiça Esmeraldino Bandeira referente ao segundo semestre de 1909. ANRIO.IJ6.356

- Relatório do chefe de Polícia enviado por referente ao ano de 1909.  ANRIO.IJ6.386

- Tribuna de Petrópolis (jornal). Edição de 6 de maio de 1909. ANRIO.ON.JRS.48.6

Referências bibliográficas

BORGES, Vera Lúcia Bogéa. A Batalha Eleitoral de 1910: Imprensa e Cultura Política a Primeira República. Rio de Janeiro: Apicuri/FAPERJ, 2011.

___. Morte na República: Os Últimos Anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica (1909-1915). Rio de Janeiro: IHGB/Livre Expressão, 2004.

VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: C/Arte, 2001.

 


[1] Historiadora e Professora na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO (Departamento de Turismo e Patrimônio). Autora dos livros A Batalha Eleitoral de 1910: imprensa e cultura política na Primeira República (Apicuri, 2011 – Prêmio Sergio Buarque de Holanda – Biblioteca Nacional) e Morte na República: os últimos anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica (1909-1915) (IHGB/Livre Expressão, 2004). Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

 

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