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Eros Volúsia e a moderna dança nacional

Por Karla Carloni, Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense

Em 1914 os poetas Gilka Machado, famosa por sua escrita erótica, e Rodolpho Machado, morto precocemente, prenunciaram o futuro da filha ao lhe registrar como Heros Volúsia Machado. Com a carreira artística, a bailarina carioca suprimiu a primeira letra do nome, passando a se chamar Eros, deus do amor na mitologia grega. Nada poderia ser tão revelador. A sonoridade das palavras provocava as imaginações e parece expressar, com exatidão, a personalidade da jovem bailarina.  

 Curiosamente apesar das informações a respeito da data de nascimento de Eros indicarem o ano de 1914, em sua carteira profissional consta o ano de 1919. Não sabemos se é um caso de erro de registro, equívoco de seus biógrafos ou, até mesmo, tentativa da bailarina em algum momento de sua vida parecer mais jovem.

Volúsia teve papel central na proposta de criação de um bailado genuinamente nacional. Bailarina de formação clássica e originalmente integrante do corpo de baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, desde jovem se dedicava a pesquisa de danças, buscando a formulação de movimentos que traduzissem o que ela chamava de o “corpo mestiço”. Eros viajou pelo Brasil estudando e recolhendo aspectos de danças que identificava como de origem colonial, africana ou indígena.

Na busca da “verdadeira identidade nacional” e de uma estética que a representasse, em 1939, Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde (MESP) do Estado Novo, convidou a jovem bailarina para assumir a direção do Curso de Ballet do Serviço Nacional de Teatro, que posteriormente deu origem a um corpo de baile. O curso era gratuito e funcionava no Teatro Ginástico em meio a dificuldades, sendo a maioria dos alunos jovens pobres.

Em 3 de julho 1937, a bailarina apresentou no Theatro Municipal o espetáculo Eros Volúsia – Bailados Brasileiros. O evento teve participação da orquestra sinfônica da casa sob a regência do maestro Francisco Mignone e era uma iniciativa do MESP. A noite contou com a presença de Getúlio Vargas na plateia e no repertório estavam bailados como Yara, Iracema, No terreiro da Umbanda e Lundu.[1]

Já em 1938, Eros Volúsia novamente voltou aos palcos do mesmo teatro no espetáculo comemorativo Cinquentenário da Abolição, também promovido pelo MESP. Mário de Andrade, profundo pesquisador da cultura brasileira, era um admirador da bailarina.

Sintetizando as suas experiências e ideias, em 20 julho de 1939, Eros proferiu no Teatro Ginástico uma palestra na qual apresentou um estudo a respeito da dança brasileira, A creação do bailado brasiliense. Em novembro do mesmo ano o jornal o Correio da Manhã lançou crítica muito positiva à obra e à trajetória artística de Eros. Assinada por João Itiberê da Cunha, compositor e crítico musical respeitado, o texto de acentuado tom nacionalista destacava que Eros havia contribuído para recuperar e estilizar as danças tradicionais “primitivas” e “selvagens” brasileiras.[2] 

No contexto da Segunda Guerra Mundial a política pan-americanista promovida pelos EUA revelou-se nos palcos tanto daquele país quanto do Brasil. O ideal de cooperação interamericana e solidariedade hemisférica, como apresentou Gerson Moura em seu já clássico trabalho, transpareceram no rádio, no cinema, nos jornais e no teatro e tiveram importante papel na construção de um sentimento pró-americano.[3]

Não foi somente Carmen Miranda que estrelou na terra do Tio-Sam. Outros artistas nacionais, entre eles Eros Volúsia, também mantiveram relações próximas com a indústria cultural daquele país. A bailarina foi a primeira brasileira estampar a capa da revista norte-americana Life Magazine, em 1941. E em 1942 participou do filme Rio Rita, comédia gravada pela Metro-Goldwyn-Mayer. Na ocasião Eros encenou de forma estilizada uma “roda de macumba”.

A da revista Life traz a reportagem sobre a “Brazil top’s dancer”.  Na capa Eros aparece sorridente com vários adereços. No dorso o pequeno e famoso bustiê de contas que se movimentavam junto com o ritmo da dançarina. Ao longo da reportagem, com muitas fotos, a jovem era apresentada como uma mestiça compromissada com as danças nativas, como as das “selvas africanas dos antepassados escravos”. As imagens retratavam um corpo com vestimentas diminutas para os padrões da época. Cabelos soltos, movimentos livres e pés descalços eram acompanhados por percursionistas negros com o torso nu e tocando atabaques.[4]

Acompanhar a trajetória de Eros durante o governo Vargas (1930-1945) permite compreender a dinâmica relação entre artistas influenciados pelo modernismo que desejavam reformular a arte nacional e um governo que incentivava produções culturais com caráter nacionalista e dentro do espírito da “democracia racial”. A bailarina deve ser vista como uma intelectual que no campo da dança dialogou com os seus contemporâneos contribuindo, assim, com pesquisas e experimentos.

 

[1] PEREIRA, Roberto. Eros Volúsia: a criadora do bailado nacional. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004, p. 33-35.

[2] Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 14 nov. 1939.

[3] Ver: MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural norte-americana. São Paulo: Brasiliense, 1986. 

[4] Reportagem e a capa da Life estão integralmente reproduzidas em: VOLÚSIA, Eros. Eu e a dança. Rio de Janeiro: Revista Continente Editorial, 1983.

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