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O renomado escritor português, José Saramago, em seu veredito no Tribunal Internacional para julgar os massacres de Corumbiara e Eldorado dos Carajás, afirma: "O latifúndio é algo absolutamente anti-humano. Algum dia alguém chegou e disse: isso aqui é meu e a partir daí começaram as desgraças todas, porque quem disse "isso aqui é meu", pôs imediatamente para guardar aquilo que disse ser seu: a polícia. E alguém disse: mas não posso ter aí um bocado ou aquilo de que necessito só para viver? Não pode. E se teima, entra e insiste, é abatido a tiro ou sacrificado de qualquer outra maneira". O latifúndio é cruel. Não tem coração, nem alma. E saber que quase todo ele tem origem espúria... (Dom Orlando Dotti. Apresentação. Conflitos do Campo no Brasil. CPT, 1996)

O Brasil, atualmente, tem um dos mais alto níveis de concentração fundiária do mundo. Dados reunidos pelo Atlas do Espaço Rural Brasileiro, feito pelo IBGE em 2020, demostram que os pequenos produtores rurais têm a maior parte das propriedades no campo, no entanto, representam um território muito menor do que a parcela de terra pertencente aos grandes latifundiários: 81% das propriedades rurais tem até 50 hectares, ocupando apenas 12,8% da área total dos estabelecimentos rurais; enquanto os maiores proprietários de terras possuem mais de 2,5 mil hectares, representando apenas 0,3% das propriedades rurais e 32,8% das áreas de fazendas do Brasil.

Característica do espaço rural brasileiro, essa concentração fundiária impede que um grande contingente populacional tenha acesso à terra para viver e produzir. O avanço dos grandes latifúndios impôs-se, ao longo da nossa história, por meio do poder econômico e político dos grandes proprietários e da violência, gerando inúmeros embates e conflitos pela terra, o que conhecemos como questão agrária.

A concentração de terras no Brasil é tão antiga quanto a chegada dos portugueses à América e a divisão do território em capitanias hereditárias e sesmarias[1], primeira forma assumida pelo latifúndio brasileiro. Em 1850, o governo imperial oficializaria, através da Lei de Terras, a opção do Brasil pelo latifúndio: a única forma de acesso às terras devolutas da nação seria realizada através da compra ao Estado, garantindo, assim, seu título de propriedade[2]. Apesar do que previa a lei, grande parte dessas terras devolutas foram apropriadas por meio do processo de grilagem da terra, que incluía falsificação de documentos, subornos, invasões de territórios indígenas e terras camponesas e o uso da violência[3].

A Proclamação da República em 1889, em nada alterou o monopólio da terra no Brasil. As primeiras décadas do século XX foram marcadas pelo fenômeno do coronelismo[4]e o poder político e local dos grandes proprietários, que dominavam as terras e a vida dos camponeses. A massa de ex-escravos, agora trabalhadores livres e sem-terra, expandiu-se com a chegada de imigrantes europeus que vieram trabalhar nas lavouras brasileiras e se veem submetidos a exploração do seu trabalho pelos latifundiários. “Os camponeses trabalhavam na derrubada da mata, plantavam nessas terras até a formação das fazendas, depois eram expropriados. Aos que resistiram na terra, o poder do coronel era explicitado pela perseguição e morte” (FERNANDES, 1999).

O período foi marcado por movimentos populares de oposição à república dos coronéis, ao cerco das terras e à miséria no campo. Exemplos disso foram: a organização do arraial de Canudos na Bahia, que rompia com a ordem coronelista e latifundiária; a luta de camponeses no sul do país contra a expropriação de suas terras para a construção de uma estrada de ferro, que ficou conhecida como guerra do Contestado e, até mesmo, o banditismo sertanejo do cangaço, tiveram, em sua origem, a luta camponesa contra o poder dos coronéis e pela terra. Todos duramente reprimidos pelas forças do governo, garantindo a manutenção do poder e da terra nas mãos dos grandes fazendeiros.

Em meados do século XX, surgiram as Ligas Camponesas – associações de trabalhadores rurais criadas inicialmente no estado de Pernambuco, mas que se fariam presentes em outros estados da federação, conferindo um caráter nacional à luta no campo. As ligas exerceram intensa atividade durante as décadas de 1950 e 1960, prestando assistência jurídica e médica a seus associados, organizando encontros e congressos nacionais para debater o a questão agrária, além de realizarem ocupações massivas. Suas ações unificaram a luta pela terra, até então mais específicas e localizadas, numa pauta maior que envolveria toda sociedade: um projeto de reforma agrária que atendesse às reivindicações camponesas em seu conjunto.

Com o golpe militar de 1964, a questão agrária no Brasil se ampliaria. As ligas camponesas foram duramente reprimidas e o movimento desarticulado. No entanto, a luta pela terra jamais cessaria. O período militar foi responsável pela maior concentração fundiária no Brasil até então. A opção do governo pela agricultura capitalista, com a modernização e industrialização do setor agrário[5], foi responsável pelo grande número de trabalhadores rurais expropriados e expulsos do campo. Como consequência direta, o aumento e expansão dos conflitos rurais em todo território nacional.

À resistência camponesa, o governo responderia com violência, em nome da “segurança nacional[6]. A força privada dos grandes fazendeiros receberia o apoio da força pública, na tentativa de controlar a questão agrária através da repressão aos movimentos rurais. Sucederam-se perseguições políticas, torturas e assassinatos das lideranças camponesas que se opunham ao projeto político e econômico hegemônico[7]. Dados estatísticos revelam mais de 1000 casos de mortes e desaparecimentos forçados de camponeses e apoiadores no período (VIANA, 2013). A atuação do governo militar no campo apenas reforçou o quadro de dominação e exploração dos trabalhadores rurais.

Em 1975, surge a Comissão Pastoral da Terra (CTP), vinculada à Igreja Católica. Inspiradas nos ensinamentos da Teologia de Libertação e atuando junto às paróquias nas periferias das cidades e nas comunidades rurais, a CTP apoiou a organização popular no campo. Foi a ação da Pastoral no Sul do país, no final da década de 1970, que deu origem ao mais amplo movimento camponês da história do Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que tem, na ocupação da terra, a forma principal de resistência da luta camponesa pela reforma agrária. As ocupações massivas se intensificaram nos anos posteriores, sendo a política de assentamento do governo, uma resposta às ações dos trabalhadores sem-terras.

A redemocratização e o suporte legislativo primordial para as ações de reforma agrária garantidos no texto constitucional de 1988, não foram suficientes para alterar a nossa desigual estrutura fundiária. A década de 1990 assistiu a expansão do agronegócio e os conflitos no campo se agravaram, como mostram os dados da CTP.

Desde a sua criação, a Pastoral registra os conflitos que envolvem os trabalhadores do campo e denuncia todas as formas de violência por eles sofrida. Em 1985, criaram um setor de documentação para colher as informações sobre as violações aos direitos humanos no campo e sistematizá-las. Desde então, a CTP publica anualmente o relatório Conflitos do Campo no Brasil, importante periódico para formação de consciência e opinião pública sobre a questão agrária.

Em nossas pesquisas no fundo da Secretaria de Assuntos Especiais (SAE) da Presidência da República, órgão criado em 1990 e que incorporou as atribuições do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), encontramos a edição de 1996 do caderno Conflitos no Campo, ano marcado pelo massacre de Eldorado dos Carajás. As fotografias e gráficos utilizados fazem parte da publicação. O fundo reúne ainda relatórios de inteligência sobre questões fundiárias e indígenas; sobre movimentos sociais reivindicatórios; além de informes sobre a conjuntura interna e externa. ele se encontra disponível para consulta digital, acessível pelo SIAN com a notação BR_DFANBSB_H4_MIC_GNC_RRR_990014989.

O acervo, recolhido ao Arquivo Nacional em 2012, é importante fonte para o estudo da questão fundiária no Brasil, que perdura a mais de cinco séculos e que estará longe de ser resolvida enquanto o uso da terra não for mais democrático, menos explorador e mais sustentável ambientalmente.

 

[1] A política de concessão de vastas extensões de terras para alguns poucos detentores de riqueza e títulos de nobreza existentes na colônia.

[2] A Lei de Terras garantiria que os imigrantes europeus e ex-escravos (a partir de 1888) não tivessem como adquirir terras sendo obrigados a trabalhar para os grandes proprietários, foi o que o sociólogo José de Souza Martins chama de cativeiro da terra: se o trabalhador é escravo, a terra pode ser livre, como eram as terras doadas no período colonial, mas se o trabalhador é livre, a terra precisa ser cativa, de propriedade de poucos.

[3] Aquele que teria a posse da terra por meio do trabalho, tornando a terra produtiva, mas não tem o domínio, materializado no título de propriedade, este só seria possível para aqueles que detém o poder.

[4] Para saber um pouco mais sobre a Primeira República, veja aqui

[5] O que ficou conhecida como “revolução verde”, baseada no tripé agricultura extensiva, mecanização pesada e utilização de agrotóxicos.

[6] Leia mais sobre Segurança Nacional e repressão política na experiência republicana brasileira, nesse artigo.

[7] Foi o caso da Guerrilha do Araguaia.

 

Leia mais em:

Viana, Gilney. Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Brasília-DF, 2013.

Silva, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

Martins, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Contexto, 1979.

Fernandes, Bernardo Mançano. Brasil: 500 anos de luta pela terra. . In: Revista Cultura e Vozes, número 1, ano 93. Editora Vozes, Petrópolis, 1999. 

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