.

 

No dia 4 de setembro de 1969, em Botafogo, bairro da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro (então estado da Guanabara), um carro Volks, estacionado na rua Marques fez uma rápida manobra bloqueando o Cadillac que dobrava a esquina com a rua São Clemente. No automóvel de luxo, um motorista da embaixada norte americana conduzia o diplomata Charles Burke Elbrick, transferido para o Brasil nesse mesmo ano. “Sérgio” e “Jonas” entram no carro do embaixador pela porta traseira. “Geraldo” assume a direção, rendendo o motorista. 

Doze jovens estudantes, integrantes de movimentos revolucionários armados contra o governo militar, sequestravam o embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Segundo Jacob Gorender [1], pela primeira vez na história um diplomata virava refém da guerrilha urbana.  Exigiam em troca a liberação de 15 presos políticos e a divulgação, em rede nacional de rádio e televisão, de uma carta-manifesto onde a ALN (Aliança Libertadora Nacional) e a DI-GB (Dissidência da Guanabara, assinando como MR-8) assumiam a autoria do sequestro e denunciavam os crimes e torturas da ditadura.  

A Junta Militar que ora governava o país atendeu às reinvindicações dos sequestradores. A depender do desfecho do episódio, este poderia ter um custo político muito alto para as relações diplomáticas entre os dois países, os EUA era um importante aliado do governo brasileiro. Com os presos políticos libertos e a caminho do México, Charles Elbrick foi libertado, após três dias de cativeiro.  

O sucesso imediato da ação da esquerda armada representou um duro golpe para o regime militar. No entanto, provocou uma exacerbação da guerra contra o terror promovida pelo governo brasileiro. No mesmo mês de setembro de 1979, o governo promulgaria novos Atos Institucionais, o de número 13, que previa o banimento do território nacional de todos aqueles considerados inconvenientes ou perigosos a segurança nacional e o Ato 14, que instituía a pena de morte e prisão perpétua em “guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva”. 

O esquema acima retrata a ação dos envolvidos no sequestro e foi produzido pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE), a partir de informações obtidas durante interrogatórios preliminares a que foi submetido Manoel Cyrillo de Oliveira Neto, codinome “Sérgio”, um dos participantes do episódio envolvendo Charles Elbrick. O esboço mostra ruas de Botafogo, a localização dos partícipes e descreve o papel de cada um deles na ação. Integra um documento confidencial de 19 páginas encaminhado pelo Ministério do Exército à Comissão de Inquérito Policial Militar, que traz, além do croqui, informações, depoimentos e documentos obtidos após a prisão de três “elementos” que participaram do sequestro: Manoel Cyrillo de Oliveira Neto, Virgílio Gomes da Silva e Paulo de Tarso Venceslau.  

Cyrillo e Venceslau foram presos em fins de setembro no litoral paulista por agentes da Operação Bandeirantes (Oban) e condenados à prisão por crimes contra a Segurança Nacional. Já Virgílio Gomes da Silva foi morto nas dependências da Oban antes de prestar depoimento, segundo o documento, Virgílio “reagiu violentamente a sua prisão, vindo a falecer em consequência dos ferimentos recebidos, antes mesmo de prestar declarações”. As Forças Armadas jamais admitiram sua morte oficialmente, Virgílio é considerado o primeiro desaparecido político da ditadura militar [2].   

O episódio do sequestro de Charles Burke foi narrado muitas vezes em textos jornalísticos, livros e filmes, quase sempre como um ato heroico de jovens idealistas. Mas poucos estudos foram realizados no sentido de entender como a ação, que influenciaria outras da mesma natureza, afetaria a política externa norte-americana no período. A historiadora Pâmela de Almeida Resende afirma que, durante as décadas e 1960 e 1970, a incidência de sequestros de representantes diplomáticos com fins políticos chamou a atenção mundial, e contribuiu para o acirramento da política norte-americana de contrainsurgência que a autora define como um conjunto de “ações políticas, militares, psicológicas e cívicas para a dissolução de movimentos insurgentes e a restauração da confiança e legitimidade das instituições governamentais diante da opinião pública” (RESENDE, 2019). Segundo Pâmela, o episódio envolvendo o embaixador norte-americano influenciaria de maneira decisiva a relação entre os EUA e o Brasil e contribuiria também para que o governo estadunidense endurecesse sua política contra grupos revolucionários em outros países. 

Foram quatro sequestros [3] de diplomatas no Brasil entre os anos de 1969 e 1970 e mais de 130 presos políticos libertados, além de tentativas malogradas e sequestros à aviões. Para a historiadora Carla Luciana Silva, essas ações configuram-se como uma importante tática de luta e resistência da esquerda armada contra a ditadura, mas que contribuíram para o reordenamento da repressão que “aprimorou seus métodos e promoveu aprimoramento de técnicas de torturas e assassinatos” (SILVA, 2020). 

O acervo do Arquivo Nacional guarda importantes documentos sobre esse período da história do Brasil, sobretudo aqueles produzidos pelos órgãos de repressão do governo militar, que podem contribuir para o aprofundamento dos estudos a cerca desse tema. 

[1] Jacob Gorender, Combate nas trevas. São Paulo, Ática, 1998.

[2] Em 1995, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu que Virgílio foi morto pela repressão do governo militar e emitiu atestado de óbito. Apenas em 2004, foi encontrado, no Arquivo Público de São Paulo, o laudo necroscópico de Virgílio. 

[3] Embaixador dos Estados Unidos Charles Burke Elbrick; Consul do Japão, Nobuo Okushi; Embaixador da República Federal da Alemanha, Ehrenfried von Holleben e Embaixador da Suíça, Giovani Enrico Bucher.

 

*** O documento, de onde as imagens aqui reproduzidas foram retiradas, está digitalizado e pode ser acessado pelo Sistema de informações do Arquivo Nacional (SIAN). Notação: BR RJANRIO AAJ.0.IPM.0706. 

 

Leia mais:  

SILVA, Carla Luciana. Sequestros e terrorismo de Estado no Brasil: casos de resistência revolucionária. Izquierdas, 49, octubre 2020. 

RESENDE, Pâmela de Almeida. “Ser um embaixador não é um mar de rosas”: o sequestro de Charles Burke Elbrick no Brasil em 1969. Tese apresentada ao programa de pós-graduação em História Social – USP. São Paulo, 2019. 

REIS FILHO, Daniel Aarão (org.). Versões e ficções: o sequestro da história. São Paulo: Perseu Abramo, 1997. 

Todo o conteúdo deste site está publicado sob a licença  Creative Commons Atribuição-SemDerivações 3.0 Não Adaptada.