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Indisciplina, desrespeito à hierarquia e subversão marcaram os últimos anos de Jair Bolsonaro como capitão do Exército, nos anos 1980. Para a sua despedida da vida na caserna colaboraram a publicação de artigo no qual ele defendia aumentos salariais para os militares e, especialmente, uma acusação de terrorismo, como um dos mentores da operação “Beco sem saída”. Os dois fatos, divulgados pela revista Veja, em 1986 e 1987, e suas repercussões, que levariam Bolsonaro a ser julgado pelo Superior Tribunal Militar, em 16 de junho de 1988, encontram-se descritos no prontuário elaborado pelo Centro de Inteligência do Exército em 1990. O documento[1] - classificado à época como secreto ­ integra o acervo do Arquivo Nacional e está disponível à consulta em meio digital.

                                                                                                                      

 

Jair Bolsonaro ingressou no Exército em 1973. Ao final daquele ano, prestou concurso para a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), instituição de ensino superior responsável pela formação dos oficiais combatentes de carreira do Exército brasileiro, situada em Resende, Rio de Janeiro. O cadete 531 destacava-se nas atividades desportivas – o que lhe rendeu o apelido de Cavalão. Nas disciplinas teóricas, seu desempenho era não mais que razoável e as notas evidenciavam que não progrediria na carreira militar. Bolsonaro concluiu a formação na AMAN em 1977, tendo escolhido a artilharia. Em seu último ano, fez treinamento para se tornar combatente paraquedista do Exército, sendo a brigada paraquedista uma das tropas de elite das Forças Armadas. Dos paraquedistas incorporou o brado “Brasil acima de tudo”, que utilizaria no artigo da revista Veja e como slogan do seu governo (2019-2022) acompanhado de “Brasil acima de todos”.

Importante ressaltar que a formação de Bolsonaro se deu durante o período da ditadura militar e que parte dos seus instrutores havia lutado contra a guerrilha do Araguaia; alguns exibiam em salas de aula, imagens dos corpos dos guerrilheiros dizimados nessas operações. O treinamento antiguerrilha da AMAN era intenso e incluía, então, aulas práticas nas matas do Parque Nacional de Itatiaia.

Depois de formado, Bolsonaro integrou o Grupo de Artilharia do Exército, no Rio de Janeiro; em seguida, foi para Nioaque, no Mato Grosso do Sul, onde permaneceu por dois anos. Em 1983, foi promovido à capitão, a mais alta patente que alcançou.

Em 1986, de volta ao Rio de Janeiro e servindo como fiscal administrativo, com 31 anos, Bolsonaro resolve se manifestar contra os baixos salários dos militares. Escreve o artigo O salário está baixo, publicado na revista Veja na edição de 3 de setembro daquele ano.

Conforme a Informação n. 494/S/102-A8-CIE, no artigo, Bolsonaro comenta a evasão de oitenta cadetes da AMAN, “descontentes e sem perspectivas”; relata “as perdas salariais do funcionalismo público nos últimos anos” – durante o governo de José Sarney – discorre sobre o fato de que outras categorias profissionais incorporaram vantagens aos salários, enquanto os militares viram sua remuneração ser corroída pela inflação. O texto encontrou eco entre boa parte dos militares, em especial os de baixas patentes, que se manifestaram a favor do capitão pessoalmente ou por intermédio de suas esposas. Estas promoveram atos de apoio a Bolsonaro, nos quais criticavam os generais que não “ligam para a situação aflitiva dos capitães, porque vivem com muitas mordomias e vantagens”.

Bolsonaro foi punido com quinze dias de prisão, por ter publicado artigo “sem conhecimento e autorização de seus superiores”; “ter abordado aspectos da política econômico-financeira do governo fora de sua atribuição e sem possuir um nível de conhecimento global que lhe facultasse a correta análise”; “ter sido indiscreto na abordagem de assunto oficial, comprometendo a disciplina”; “ter censurado a política governamental”; “ferido a ética, gerando clima de inquietação no âmbito da organização militar”; e por ter “contribuído para prejudicar o excelente conceito da tropa paraquedista”.

Em 25 de outubro de 1987, matéria da jornalista Cássia Maria Rodrigues publicada pela revista Veja, intitulada Pôr bombas nos quartéis, um plano na ESAO (Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais), afirmava que Jair Bolsonaro e o capitão Fábio Passos da Silva, planejavam explodir bombas em várias unidades militares do Rio de Janeiro de modo a protestar contra a prisão do capitão Sadon Pereira Filho que entregara a seus superiores um manuscrito reivindicando melhores salários. Segundo a esposa de um dos capitães, entrevistada pela jornalista, a operação havia sido intitulada “Beco sem saída”.

Logo após a divulgação da reportagem, o ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, defendeu a estabilidade do governo e acusou a Veja de ter fraudado a notícia. Mas, na edição seguinte da revista, de 4 de novembro de 1987, a matéria “De próprio punho”, comprovava a entrevista de Bolsonaro, ao apresentar croquis feitos à mão por ele mostrando a adutora do Guandu, que abastece de água o Rio de Janeiro, e o rabisco de uma bomba relógio. A Veja também relatava que testemunhas presenciaram as entrevistas do capitão.

 

Conforme o documento do fundo Estado Maior das Forças Armadas preservado pelo Arquivo Nacional, uma vez que as averiguações realizadas não conseguiram elidir a dúvida que pairava sobre a conduta de Bolsonaro, em 16 de novembro de 1987, foi sugerido que ele fosse submetido a Conselho de Justificação, pedido acatado pelo ministro do Exército. O processo no referido Conselho levantou todas as informações sobre a passagem de Bolsonaro pelas Forças Armadas; algumas delas estão mencionadas em seu prontuário. Destaca-se, por exemplo, o pedido de informações “sobre o envolvimento do nominado, no ano de 1983, com relação a transações no garimpo de ouro”. E ainda, o conteúdo da “carta apócrifa” encaminhada a diversas unidades da Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (ESAO) e da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) com o título “Senhor Bolsonaro: o exemplo começa em casa”, na qual ele é aconselhado a averiguar os passeios e programas realizados pela esposa, Rogéria, no Rio de Janeiro, enquanto ele se encontrava em exercícios militares em Campinas, Rondonópolis e Brasília. A carta também acusa Bolsonaro pela prática de contrabando por viajar ao Paraguai para “trazer muamba”. O prontuário expõe, ainda, seu comportamento com relação à repórter Cássia Maria. Conforme dados da imprensa constantes do documento, a jornalista afirma ter “recebido ameaça de morte do referido capitão, momentos antes de iniciar seu depoimento” no Conselho de Justificação. Após a condenação unânime no Conselho, por três votos a zero, o processo seguiu para o Superior Tribunal Militar.

Segundo o Informe A_1, em 16 de junho de 1988, o STM julgou por maioria de votos (9 x 4) Bolsonaro “não culpado”. A advogada de Bolsonaro havia solicitado a anulação do Conselho de Justificação, o que foi rejeitado mas, insistiu na tese de que dois laudos periciais foram inconclusivos em relação à autoria dos esboços publicados pela Veja, e, desse modo, obteve êxito.

Outro Informe do prontuário de Bolsonaro registra encontro dele com o ex-presidente João Figueiredo sem deixar claro se havia ocorrido antes ou após o julgamento no STM. Vale registrar que, em julho de 1988, Bolsonaro reuniu-se com um grupo de capitães em churrascaria no bairro de Marechal Hermes, Rio de Janeiro, no qual manifesta “intenção de continuar se pronunciando publicamente a respeito de assuntos ligados ao Exército, particularmente sobre vencimentos. Pretende realizar manifestações com interesses políticos.” No final daquele mês, Bolsonaro lança a sua candidatura à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. “Sua base eleitoral seria o público interno descontente com seus vencimentos.”

Em sua campanha, o capitão, “tenta aliciar cabos eleitorais de outros candidatos de seu partido”; realiza panfletagem em frente às escolas de comando, “abordando praças”. Conforme o prontuário, “residindo no conjunto residencial da ESAO, causa repercussão negativa o fato do nominado trajar camisetas com sua propaganda eleitoral”. Em outubro de 1988 afirma que, “depois de perceber que ‘neste país, tudo depende de uma decisão política’, resolveu abdicar da carreira militar.” Elege-se vereador pelo PDC no Rio de Janeiro.

A análise da passagem de Bolsonaro pelo Exército evidencia o seu desejo de fazer parte de uma ordem e, ao mesmo tempo, o de subverter essa ordem. Se o artigo publicado na Veja o tirou das sombras, dando a ele um protagonismo que sua carreira no Exército estava longe de evidenciar, o julgamento no STM foi a cereja do bolo, coroando os esforços de um capitão para se afirmar acima - e apesar - da lei.

 

As imagens foram extraídas do documento:

 [1] Informação n. 394 S/102-A8-CIE, 27 de julho de 1990. Arquivo Nacional, Estado Maior das Forças Armadas. BR_DFANBSB_2M_0_0_0042_v_04.

Referências

Araujo, Valdei Lopes; Klem, Bruna; Pereira, Mateus Henrique de Faria (orgs.). Do fake ao fato: des (atualizando) Bolsonaro. Vitória: Milfontes, 2020.

Carvalho, Luís Maklouf. O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel. São Paulo: Todavia, 2019.

Retrato narrado #2: Indisciplina militar. Apresentação, reportagem e roteiro: Carol Pires. Rádio Novelo, 7 out., 2020. Podcast. Disponível em:  https://open.spotify.com/episode/1ZNJCB5igL2e51eZJiVms8?go=1&sp_cid=096cddcc0a76cfcdf3e4ef52bdbbeacb&utm_source=embed_player_p&utm_medium=desktop&nd=1#_=_ Acesso em: 7 de fevereiro de 2023.

Veja. O artigo em VEJA e a prisão de Bolsonaro nos anos 1980. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/reveja/o-artigo-em-veja-e-a-prisao-de-bolsonaro-nos-anos-1980/ Acesso em 10 de fevereiro de 2023.

 

 

 

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