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No artigo 5 do primeiro capítulo do Título II da Constituição brasileira lê-se:

 não haverá penas:

  1. a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
  2. b) de caráter perpétuo;
  3. c) de trabalhos forçados;
  4. d) de banimento;
  5. e) cruéis;

Nossas Constituições republicanas de uma forma geral vetaram a possibilidade da pena capital (de morte), excetuando as duas Constituições outorgadas em ditaduras: a de 1937 (governo Vargas) e a de 1967 (ditadura militar). Em nome da “segurança nacional” (conceito bastante maleável, considerando seu uso pelas duas ditaduras) e como enfrentamento a uma suposta “guerra contra o inimigo interno,” estes regimes autoritários transformaram a disputa política em combate desproporcional e muitas vezes ilícito contra aqueles que contestavam sua visão de mundo, pátria e, principalmente, de desenvolvimento nacional.

Originalmente a Constituição de 1967 também não estabelecia a pena de morte ou banimento. Mas o Ato Institucional 14, editado em setembro de 1969, modifica a Carta e introduz a pena de morte nos casos de “casos de guerra externa, psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva.” Ou seja, a pena poderia ser aplicada não apenas em caso de conflito com outras nações, mas contra qualquer um considerado subversivo pelas autoridades, mesmo sem o envolvimento de estrangeiros. O ato ampliava, e muito, o escopo da Lei de Segurança Nacional, revista 2 meses antes. Publicado no mesmo dia que o Ato Institucional n. 13, que instituía a pena de banimento, o AI-14 resultou, do ponto de vista conjuntural, do sequestro do embaixador norte-americano Burke Elbrick em setembro daquele ano. Outros sequestros de diplomatas se seguiriam, indicando a pouca eficácia do dispositivo extremo. Contudo, a edição do AI-14, assim como de outros atos institucionais e da própria Constituição elaborada em gabinete e imposta à sociedade, representa uma estratégia de busca por legitimidade de um regime por definição ilegal e ilegítimo. Estas tentativas de conceder uma aparência de normalidade política e legalidade incluíam as eleições periódicas (embora em muitos caso, indiretas; em outros, tão carregadas de regras e limitações que a vitória governista era quase inevitável) e outros dispositivos jurídicos, inclusive o julgamento de civis pela justiça militar, em casos de crimes contra a “segurança nacional.”

Em outubro de 1970, em Salvador (BA) Theodomiro Romeiro, Getúlio de Oliveira e Paulo Pontes , todos membros do então clandestino Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) foram abordados por quatro agentes da repressão com o objetivo de realizar uma prisão _ legal ou ilegal, não se sabe. Paulo e Theodomiro foram presos, mas este último encontrava-se armado e conseguiu atirar 3 vezes, mesmo já algemado. Um dos agentes alvejados morre _ sargento da aeronáutica Walder Xavier, 35 anos, agente do Doi-Codi baiano. Julgados pela justiça militar no ano seguinte, Paulo seria condenado à prisão perpétua, e Theodomiro, à morte. Foi o primeiro caso de condenação à morte no período republicano, constituindo um claro exemplo de uso político do foro militar.

A repercussão da condenação de Theodomiro foi imediata, tanto no Brasil como fora do país. Entidades como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) posicionaram-se veementemente contrários tanto à condenação quanto ao dispositivo jurídico que o permitia. Nos jornais do mundo, nas entidades de defesa dos direitos humanos e mesmo fóruns multilaterais houve manifestações contra a condenação.

Para além da utilização de um arcabouço legal a apoiar a atuação autoritária e repressora do regime, o mesmo também agia à margem das próprias leis, perseguindo, realizando prisões clandestinas, torturando, “desaparecendo” opositores. Esta atuação ilegal só podia ser denunciada fora do país, já que os meios de comunicação encontravam-se sob censura e acirrado escrutínio.

A defesa de Theodomiro apelou à segunda instância no Superior Tribunal Militar, tentando caracterizar os crimes do jovem _ então com 19 anos _ entre o rol de crimes comuns. Embora recusando esta tese, o TSM converteu sua pena à prisão perpétua. Em 1979, em meio aos debates sobre a anistia e quem poderia se beneficiar dela, conseguiu evadir-se do Brasil, fugindo para a França, onde viveria até 1985, o fim definitivo da ditadura militar. De volta, graduou-se em direito e aposentou-se em como juiz do Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco.

Além do Ato Institucional n. 14, a matéria apresenta outros documentos que integram o acervo do Arquivo Nacional. O recorte de jornal da época pertence ao dossiê br_dfanbsb_v8_mic_gnc_aaa_71036368 (fundo Serviço de Segurança Nacional); e os dois links encaminham para os seguintes documentos: br_dfanbsb_vaz_0_0_01170_d0001de0001 e br_dfanbsb_vaz_0_0_30938_d0001de0001, respectivamente, ambos do fundo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica.

ABAL, Felipe Cittolin; RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti. O PRIMEIRO CONDENADO À MORTE NA REPÚBLICA: Theodomiro romeiro dos santos e a justiça militar. História & Perspectivas: História, métodos e narrativas, Uberlândia, v. 31, n. 58, p. 175-188, 2019.

DA SILVA, Angela Moreira Domingues. Justiça e autoritarismo no Brasil: crime contra a segurança nacional e pena de morte durante a ditadura militar. Dimensões, n. 32, p. 111-127, 2014.

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