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Uma mulher em roupas esfarrapadas e longos cabelos desgrenhados encontra-se semideitada em um chiqueiro cheio de porcos; duas mulheres elegantes a observam, consternadas, de uma praia com paisagem familiar; uma construção rústica, com uma placa anunciando “Intendência”, abriga uma figura sombria, puro esqueleto, que segura uma foice e veste um manto onde se lê “febre amarela”; sobre uma janela, outra placa anuncia “Prefeitura”, de onde um porco observa o panorama, fumando; uma seringa pendurada é nomeada como “assistência pública,” e em um monte de lixo ao canto vê-se escrito “limpeza pública;” no chão, lê-se “obras públicas.”

A mulher em farrapos é o Rio de Janeiro - está escrito. As duas damas na praia com o Pão de Açúcar ao fundo são Buenos Aires e Montevideo – respectivamente, capital da Argentina e Uruguai.

Esta charge mordaz, um quadro escrito, retrata a imagem que a capital da jovem república sul-americana transmitia não apenas aos países vizinhos, mas aos visitantes em geral e, principalmente, aos próprios habitantes ao final do século XIX. Suja, insalubre, rebelde, desorganizada. Fazia-se necessário domar essa urbe selvagem e trazê-la para a esfera da modernidade e da civilização bem comportada. Para a ordem e o progresso.

O ano era 1896 e o artista, Ângelo Agostini, a frente do periódico ilustrado Dom Quixote. A República recém proclamada ainda carecia de legitimidade e identidade, e em nada a capital colonial e imperial melhorava a situação; a Constituição de 1891 determinava a construção de uma nova capital no Brasil central, o que viria a acontecer apenas décadas depois, com a criação de Brasília. Naquele momento, sem possibilidade de mudanças radicais, o governo republicano acabou por se ver na obrigação de domar a velha cidade, limpá-la do seu passado ancestral e varrer para baixo do tapete os sinais de pobreza, doença e sujeira. As reformas urbanas começariam nos primeiros anos do século XX e, se praticamente erradicaram algumas doenças até então endêmicas (como a varíola e a febre amarela), também expulsaram centenas de pessoas do centro da cidade, desprovidas de habitação, obrigadas a se mudarem para áreas afastadas dos polos de comércio e emprego em geral. A capital que surgiu depois das intervenções do prefeito Pereira Passos no início do século XX – ao menos, sua região central – era limpa, elegante, arejada, renovada e modernizada, como cabia às pretensões do governo republicano.

O Arquivo Nacional possui vários periódicos ilustrados do século XIX em seu acervo. Dom Quixote (J398), aqui apresentado, é um deles.

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