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Hoje tem criançada no Samba: origens das Escolas de Samba Mirins no Rio de Janeiro

 

Carla Lopes[1], Doutora em Artes e Cultura Popular (UERJ), mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPED) 

 

O mês de setembro dentro das religiões de matrizes africanas e no catolicismo é marcado pela celebração em torno das crianças, um contexto polifônico, com as homenagens voltadas para os santos irmãos gêmeos protetores cristãos – São Cosme e Damião, e nos ritos afrodiaspóricos, pelos Ibejis.

Assim as crianças formam o centro das diferentes celebrações que ocorrem nos bairros, cidades e em todo o Estado do Rio de Janeiro, durante o mês de setembro e se estendendo também para outubro, quando chegamos ao dia 12, Dia das Crianças e de Nossa Senhora de Aparecida – a padroeira do Brasil.

Mas, enganam-se aqueles que pensam que somente nesses meses os infantes são o foco da atenção social. Na verdade, na festa profana momesca – o Carnaval, elas sempre tiveram atenções e lugar cativo, seja nos blocos, nos bailes infantis e, mais recentemente, a partir da década de 1980, nas Escolas de Samba com um destaque maior, nas Escolas de Samba Mirins, espaços criados especificamente para crianças, adolescentes e jovens até 21 anos.

As Escolas de Samba Mirins são agremiações carnavalescas formadas por crianças, adolescentes e jovens até a idade de 21 anos, que desenvolvem propostas pedagógicas de ensino sobre as Culturas das Escolas de Samba, em espaços não formais educativos, no âmbito das escolas de samba adultas, em suas quadras, ou ainda, em espaços como a própria rua, para aquelas que não surgiram nestes espaços, mas a partir de projetos sociais fomentados por particulares e/ou instituições  governamentais estaduais ou municipais. Estas agremiações mirins também desfilam na Passarela do Samba, cuja apresentação pública atualmente ocorre na terça-feira de Carnaval. Sem ser uma meta ou objetivo de sua criação estas instituições ultrapassaram seus princípios constitutivos ao longo do tempo ao se transformarem em tecnologias sociais presentes em projetos de Organizações Não-Governamentais (ONG) e outros projetos sociais voltados para atendimento de áreas carentes e de vulnerabilidade social.

Ainda que o foco principal seja a realização do desfile, que é realizado sempre às terças-feiras “gordas”, no  Sambódromo, as  17 (dezessete) agremiações mirins,  cuidam em manter processos educativos sobre os valores civilizatórios (ELIAS, 1994) afrodiaspóricos fundadores das Culturas das Escolas de Samba (LOPES, 2019), de forma individualizada e coletiva, fortalecendo o exercício pleno da cidadania cultural (Art. 215, Constituição Federal de 1988).

Estar desfrutando do espaço da Passarela do Samba para desfilar é uma conquista e, ao mesmo tempo, uma demonstração de resiliência por parte das Escolas de Samba Mirins, exigindo uma constante capacidade de negociações e complexidade de transformações, que estão presentes desde de suas origens.

Para melhor compreender a origem desse fenômeno sociocultural precisamos retroceder no tempo ao período da Ditadura civil-militar (1964-1985), no qual a sociedade brasileira vivenciou a resistência armada de grupos contrários ao regime totalitário; houve a supressão do sistema pluripartidário, restando apenas o partido do governo (ARENA) e o partido de oposição (MDB); cultura e arte foram severamente monitoradas e vigiadas; estudantes, intelectuais, artistas e lideranças políticas que faziam parte da resistência ao estabelecimento do novo regime foram presos, sendo que alguns “desapareceram” nos porões dos quartéis.

Desde 1967, o país vivia sob o domínio da Lei de Segurança Nacional (LSN), instrumento jurídico-legal utilizado para perseguir todos aqueles que fossem contrários ao regime vigente, ou melhor, que se opusessem a ele. Junto à LSN, o Estado brasileiro implantou uma rede capilar de órgãos de informação e contrainformação que formaram o Serviço Nacional de Informações (SNI).

De posse dos relatórios de monitoramento e vigilância e do instrumento jurídico-legal, a LSN, a perseguição às lideranças políticas, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek; jornalistas, como Wladimir Herzog; e artistas, como Chico Buarque, Gilberto Gil, foram constantes, o que levou muitos militantes a forçosamente se exilarem ou serem exilados pelo Estado brasileiro.

Em 1983, ficaram em evidência partidos políticos representantes de diferentes partidos oposicionistas – com o retorno do pluripartidarismo –, dentre eles, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), liderado por Leonel de Moura Brizola, identificado com a “socialdemocracia europeia e com amplas bases no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul” (SILVA, 1990, p. 375), e o Partido dos Trabalhadores (PT), tendo como base o “sindicalismo independente, particularmente de São Paulo, católicos progressistas, socialistas e diversos grupos da esquerda não-reformista” (SILVA, 1990, p. 375).

Essa efervescência política foi relevante para a (re)construção dos diferentes segmentos sociais, em face das violações dos direitos humanos, as quais estavam submetidos, e nas ações reivindicativas do pleno exercício da cidadania no país. Dentre os grupos que voltaram à cena política, ou que se reorganizaram, destacamos o Movimento Negro, o qual julgamos fundamental para nossas análises sobre escolas de samba e escolas de samba mirins.

Em 1978, emerge uma nova entidade com atuação em âmbito nacional – o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU-CDR)[2], lembrando os anos de atuação da Frente Negra Brasileira (FBN)[3], muito embora não tenha conseguido a centralização de todas as instituições e coletivos negros, como fora a própria FBN, dada a pluralidade existente entre os grupos, em 1988 foram arrolados um total de 573 entidades negras em todo o país, só para se ter uma ideia do quanto o movimento social havia crescido no país. O Movimento Negro desafiou o Estado ao se posicionar contra o regime militar por via das lutas antirracistas que foram protagonizadas por seus militantes e ativistas.

Sob a influência de movimentos políticos, artísticos e culturais e o Pan-africanismo[4], o Movimento Negro colocava na pauta das discussões o combate ao preconceito e ao racismo, a valorização das culturas de matrizes africanas e a promoção da Igualdade Racial.

Neste recorte temporal, os problemas vivenciados pela infância e adolescência brasileira eram críticos, com boa parte das crianças e adolescentes estando fora das salas de aulas, ou, em situação de não finalização da educação básica, engrossando as fileiras daqueles denominados à época, de “menores carentes, meninos de rua ou menores abandonados”, encontrando-se em situação de extrema vulnerabilidade.

A má formação dos professores, o conteúdo disciplinar distante da vivência cotidiana dos alunos da educação básica e as faltas de criatividade e criticidade dos processos pedagógicos eram alguns dos problemas levantados por secretários municipais e estaduais de educação e de pesquisadores, como Zaia Brandão[5], que expunham estes fatores e as falhas como demonstrativos da falta de qualidade da educação no país como um todo (JORNAL DO BRASIL – 20/01/1980).

Por outro lado, no cenário cultural carioca as escolas de samba do Rio de Janeiro passavam por transformações desde os anos de 1960, que refletiam as tensões existentes entre os conceitos de tradição e modernidade, muito embora a expressão cultural popular tivesse bem pouco tempo de existência, cerca de 40 anos, para que se reivindicasse e/ou se exigisse a manutenção de uma tradição.

Os debates sobre a manutenção de suas tradições e o excessivo uso de inovações, aqui compreendidas por nós como modernidades[6], geraram apreensões diante das possíveis perdas de suas autenticidades.

As alterações estéticas atraíam cada vez mais pessoas oriundas da classe média (FERREIRA, 2004) para estas agremiações, a utilização de novas formas e materiais em fantasias e alegorias trazia cada vez mais luxo ao espetáculo, projetando-as para além da expressão de uma Cultura Popular, na verdade, inserindo-as na indústria do entretenimento. Todo este movimento levou a uma valorização e implosão destas agremiações, que muitas das vezes passaram a desfilar com até 6.000 integrantes!

A presença da telecomunicação, com um alcance populacional maior a partir de 1970, com a presença de diferentes emissoras de televisão, como a TV Continental, TV Tupi e TV Globo, dentre elas, muito impulsionou os desfiles das escolas de samba atraindo o público para este tipo de programação.

Estima-se que havia um público de 25 milhões de potenciais telespectadores, em 1970, passando, na década seguinte, para 80 milhões (CUNHA, 2009, p. 4). O alcance do potencial público em muito dependia da qualidade das imagens transmitidas, bem como do visual apresentado para a conquista deste mesmo público. O aumento de inovações tecnológicas nos desfiles foi intenso e a figura do carnavalesco, profissional que coordenava estas inovações, foi ganhando espaço cada vez maior dentro das escolas de samba. A transmissão dos desfiles pelos canais televisivos também se mostrou como outra forma de renda para as escolas de samba, assim como a produção e venda dos discos de samba de enredo. Dessa forma, as adaptações (inovações) se provaram como palpável retorno e sedimentaram o estabelecimento dessas modernidades como novas tradições, se trouxermos nossos olhares para os dias de hoje.

Em 1980, os sambas de enredo também passaram por modificações, algumas dessas agremiações carnavalescas apresentaram algumas letras tendo caráter de crítica política, o que não foi bem recebido pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), que reconheceu, na maioria dos casos, como de atuação de grupos comunistas dentro das escolas de samba. A associação de oposição ao regime militar com a prática e disseminação ideológica do comunismo era muito utilizada pelos agentes dos órgãos de vigilância como forma de legitimação de sua atuação coercitiva e de monitoramento das manifestações sociais e culturais.

É diante deste panorama político, econômico, educacional e cultural que o estado e a cidade do Rio de Janeiro passariam por transformações políticas, econômicas, educacionais e culturais a partir de 1982, que incidirão sobre a cultura das escolas de samba, a qual definimos por cultura de escola de samba as maneiras de vestir peculiares aos integrantes das escolas de samba, seja em desfiles ou em outros eventos de destaque, linguagens, hábitos alimentares, danças, códigos de comportamento, manutenção de alguns ritos religiosos, católicos ou de religiões de matrizes africanas, que em conjunto formam uma cultura material e imaterial típica de uma escola de samba, sabendo-se que estes saberes e fazeres foram se modificando ao longo do tempo e espaço, como é típico da dinamicidade de todo processo cultural. Todas estas transformações sociais e políticas propiciarão o surgimento do fenômeno sociocultural denominado Escolas de Samba Mirins.

No início da década de 1980, existiram experiências com crianças tendo como modelo de aprendizagem a cultura das escolas de samba, que consideramos como marco para o surgimento do fenômeno sociocultural escolas de samba mirins, na cidade do Rio de Janeiro.

Essas agremiações surgiram como uma nova prática discursiva representacional (HALL, 2016, p. 27) das escolas de samba, ou ainda, uma invenção, que desde então, se tornará uma tradição no tocante à formação de novas gerações de sambistas, no âmbito das Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

As experiências que envolveram crianças, adolescentes e cultura das escolas de samba consolidaram as escolas de samba como espaços culturais educativos não formais e simbolizaram sua cultura e desfiles como bens patrimoniais material e imaterial formativos de continuadores – as novas gerações de sambistas, bem como atividades de aprendizagens promotoras de inclusão social.

A primeira delas ocorreu em fevereiro de 1982, no desfile do G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis. O carnavalesco Joãozinho Trinta fez da ala das crianças daquela agremiação uma reprodução de uma escola de samba, cujo número de componentes foi de 400 crianças e adolescentes, quantitativo bastante elevado para a época, e mesmo atualmente, já que há certa padronização de, no máximo, 100 (cem) crianças neste tipo de ala, pelo menos nas escolas de samba do chamado Grupo Especial.

Em agosto de 1983, Arandir Cardoso dos Santos o Careca21, sambista do G.R.E.S. Império Serrano, fundou oficialmente a escola de samba mirim Império do Futuro, no morro da Serrinha, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.

No ano seguinte, no domingo, antecedendo as escolas de samba adultas do Grupo 1A, que desfilaram naquele dia, assim a agremiação mirim teve o privilégio de desfilar no novo palco de exibição dos desfiles das agremiações carnavalescas – a Passarela do Samba ou Sambódromo, conquistando acolhida e reconhecimento entre seus pares.

Mas, não somente na Passarela do Samba existiram escolas de samba constituídas por crianças e adolescentes. Em dezembro de 1983, foi realizado o desfile da primeira escola de samba infanto-juvenil na cidade do Rio de Janeiro, o Grêmio Recreativo Império das Princesas Negras (uma escola que sai da escola)[7]. A escola de samba mirim resultou da realização de um projeto pedagógico desenvolvido por professores, psicólogos, animadores culturais e artistas na escola municipal Ministro Gama Filho, localizada no Complexo do Lins, no bairro do Méier, fazendo com que os alunos da escola por meio de sua cultura local, o samba, transformassem o espaço formal de ensino em um local de prazer, alegria e cujos conhecimentos disciplinares passaram a ser referenciados em sua  vida cotidiana.  No ano de 1984, a escola de samba infanto-juvenil realizou seu segundo e último desfile. Ambos os desfiles ocorreram no mês de dezembro, por ser o mês de culminância ou finalização do projeto pedagógico, sendo este o momento de apresentação das atividades desenvolvidas ao longo de sua execução.

Entendemos que as três experiências são distintas, mas identificamos que o ponto de convergência entre as mesmas é a utilização do modelo escolas de samba, com constituição exclusiva de crianças e adolescentes, como protagonizadores e aprendizes promovendo a socialização deste grupo por meio da cultura. Nesse sentido, houve a inovação e renovação da prática discursiva representacional desta expressão cultural popular, ao mesmo tempo que uma renovação identitária da própria expressão por meio de criação de uma nova categoria social esquemática: crianças – educação – samba.

Salientamos que em todas as experiências nenhum adulto desfilou com elas, mas coordenaram e orientaram as ações desenvolvidas pelas crianças nas exibições das três experiências, havendo a intencionalidade de demonstrar e evidenciar o viés democrático e educativo das ações realizadas ao apresentar crianças e adolescentes como sujeitos ativos dos processos de aprendizagens ali vivenciados.

Apesar do ineditismo de Joãozinho Trinta, as escolas de samba não se mostraram afetas a terem uma ala de crianças“concorrendo” com elas no desfile na Passarela do Samba, mas, então como as escolas de samba mirins se tornaram presentes neste “palco iluminado”?

O sambista Arandir Cardoso dos Santos, o Careca, é identificado como o criador deste modelo, apesar de ter sido uma ação conjunta entre ele, familiares e moradores do Morro da Serrinha (O GLOBO, 28/10/1988), que não se configurou a partir de uma ala de crianças, mas que já surge como um desdobramento de uma escola de samba, no caso, o G.R.E.S Império Serrano.

 Constatamos que reputação e reconhecimento foram valores agregados e atribuídos discursivamente à escola Império do Futuro, que passou a ser vista como uma legítima continuadora da expressão cultural das escolas de samba para um grande grupo de sambistas – como Alcione, Roberto Ribeiro e Martinho da Vila.

Esses atributos vieram fundamentalmente a partir do discurso de preservação da tradição da cultura das escolas de samba, que Careca, compreendia como as “raízes” destas agremiações, formada a partir das diferentes matrizes culturais africanas existentes no país, o que fez com que a escola de samba mirim adquirisse além do apoio de sambistas, o de ativistas e militantes do Movimento Negro por unir educação, cultura e negritude.

Careca e seus  familiares e amigos, tentando tirar as crianças de sua localidade, o Morro da Serrinha, das más influências do tráfico local e sua violência, teriam formado a escola mirim para ocupá-los por meio da transmissão das culturas africanas presentes em sua localidade, como o maculelê, o jongo e a cultura da escola de samba Império Serrano, que, de acordo com o entendimento de Careca, estão presentes na formação das agremiações carnavalescas como elementos fundacionais.

Seguindo a narrativa de Careca, a ideia proposta por ele sofreu influência dos debates ocorridos no ano de 1979, que foi declarado pela Assembleia Geral das Nações Unidas como o “Ano Internacional da Criança”. Este ancoramento social de sua criação é mais um fato que qualificou sua criação como espaço educativo, ou melhor, um modelo pedagógico trazendo-lhe reputação por ser uma ação educativa e também cultural.

O foco da aprendizagem da escola de samba Império do Futuro estava centrado desde o saber sambar, usar os instrumentos de uma bateria de escola de samba, confeccionar fantasias, até aprender a organizar a escola na avenida, sendo todas estas ações desenvolvidas por crianças e adolescentes soba supervisão de adultos.

A escola de samba mirim Império do Futuro, ao assumir um discurso de valorização dos valores da cultura das escolas de samba, passou a ter um caráter discursivo responsivo, que encontrou acolhimento entre muitos sambistas, justamente em um dos momentos de intensos debates e disputas entre aqueles que apoiavam que as escolas de samba se mantivessem fiéis às suas tradições, opondo-se às modernidades, as chamadas inovações.

Entretanto, ao criar uma escola de samba mirim, ainda que preservadoras das tradições da cultura das escolas de samba, Careca se lançava como um inovador, trazendo um ato de modernidade para às Culturas das Escolas de Samba. O que nos leva a observar que o posicionamento entre tradição e modernidade não são posições limitantes ou muros intransponíveis, mas variável, móvel e, até mesmo, dúbio, sendo conceitos ou posicionamentos em constante intercambiações.

Quando, na entrevista para o Acervo Digital de Cultura Negra (CULTNE, 1985), Careca assinalava que sua ideia de formar uma escola mirim foi inspirada nos debates ocorridos no ano de 1979, declarado pela Assembleia Geral das Nações Unidas como o “Ano Internacional da Criança”., percebe-se que ao trazer esse histórico para a sua invenção, dava a ela um sentido educacional e social, ou melhor, a legitimava, deixando de ser apenas um objeto de uma vaidade pessoal.

Os debates, naquele momento, na década de 1980, traziam uma nova abordagem sobre o lugar social de crianças e adolescentes, que exigiam da sociedade e do Estado uma atenção especial, em vista do profundo abismo das desigualdades e exclusões sociais em que regiões periféricas (países e cidades) do planeta se encontravam. Este “novo entendimento” sobre o papel da criança e adolescente está, de certa forma, amalgamado nas ações empreendidas por Careca e sua família, que vivendo no Subúrbio Carioca, vivenciavam a falta de atendimento do setor público, e encontrando no associativismo e na cultura formas de (re)existências.

Não existe nenhuma vinculação do sambista Careca com a militância do Movimento Negro, mas sempre existiu a aproximação discursiva ou cruzamento discursivo entre ele e a militância, no que se refere à valorização das culturas de matrizes africanas, na cultura popular brasileira, como as escolas de samba o que fortaleceu sua presença e legitimou sua criação a Escola de Samba Mirim Império do Futuro.

Em sua primeira atuação, o enredo escolhido para ser desenvolvido pela agremiação demonstrava a posição da escola de samba mirim de se firmar enquanto mantenedora da cultura da escola de samba Império Serrano, fazendo eco a tantas outras vozes que defendiam a não descaracterização das escolas de samba.

O título por si só já assim demonstrava esta peculiaridade: “Serrinha, fiel às suas origens”, o texto contava a história do berço de surgimento do G.R.E.S. Império Serrano, através de seus componentes mais destacados, como Silas de Oliveira, Vovó Maria, rainha do Jongo, dos partidos altos e do primeiro rancho – Prazer da Serrinha, que deu origem à escola de samba.

Nesse contexto, a ação de Careca, e tantos outros sambistas, que são identificados como baluartes de uma resistência nascida no seio das escolas de samba, reforça aquela necessidade já anunciada por Candeia e Isnard (1978):

Consideramos da máxima importância a preparação das novas gerações de sambistas que na própria Escola poderiam e deveriam ser estimulados. E para tal, podiam lançar mão de sambistas especializados nos diversos setores supervisionando e criando técnicas de atividades e torneios infantis e juvenis. Estas questões que levantamos em nosso trabalho estão vinculadas ao futuro e ao ideal das Escolas de Samba, nossa finalidade não é outra senão a de preservar e defender a arte-popular cujos valores precisam ser alicerçados (CANDEIA; ISNARD,1978, p. 79).

 Apesar do compromisso da manutenção da tradição da cultura das escolas de samba, é preciso ter clareza que, em se tratando de celebrações, festas, a “[tradição] não é restauração no sentido de conservação, mas é uma reciprocidade constante entre nosso presente e seus objetivos e os passados que também somos” (GADAMER, 1985, p. 74). E é nessa perspectiva de trazer o antigo, sob nova roupagem, mas mantendo a tradição que a Império do Futuro estabelece como um novo modelo de escola de samba, voltada para o público infanto-juvenil, fundamentando na aprendizagem da cultura das escolas de samba. Ou seja, a obra estava aberta a novas traduções, interpretações e invenções, como é próprio na cultura popular, o que irá ocorrer com as demais escolas mirins que surgirão após a Império do Futuro.

Por meio do binômio cultura-educação, a Império do Futuro caracterizou este espaço para o público infanto-juvenil como local de brincadeira (o gostar de brincar de sambar); difusão da cultura das escolas de samba (por meio da preservação e transmissão de aprendizagem do patrimônio cultural); campo complementar de ensino, relacionando cultura e educação; e a formação de sambistas, retirando das escolas de samba esta tarefa, passando para si esta responsabilidade.

A criação e constituição da escola mirim Império do Futuro inspirou o aparecimento de outras agremiações semelhantes, além de outras com perfis diferenciados, tais como: Alegria da Passarela, Pimpolhos da Grande Rio, Planeta Golfinhos da Guanabara (atualmente nominada Golfinhos do Rio de Janeiro), dentre outras.

Algumas delas existem até hoje, outras enrolaram seus pavilhões; algumas desfilam na Passarela do Samba e outras almejam um dia chegarem a esse patamar de exibição. Ou seja, a obra estava aberta a novas traduções culturais promovidas por novos encontros (BURKE, 2011), como é próprio das dinâmicas existentes na cultura popular.

 

[1] Doutora em Artes e Cultura Popular (UERJ), mestre em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPED) e MBA em Educação Corporativa pela Universidade Veiga de Almeida (UVA). Professora de História da rede pública estadual de ensino no Rio de Janeiro. Integrante do Observatório de Carnaval - Labedis - Museu Nacional – UFRJ (OBCAR) e do Grupo de Pesquisa Trabalho, Políticas Públicas e Serviço Social (TRAPPUS) da PUC-Rio.

[2] “No seu 1º Congresso, o MNUCDR conseguiu reunir delegados de vários estados. Como a luta prioritária do movimento era contra a discriminação racial, seu nome foi simplificado para Movimento Negro Unificado (MNU)” (DOMINGUES, 2007, p. 114).

[3] Sobre a atuação da Frente Negra Brasileira (FBN), ver artigo de Arilson dos Santos Gomes “Oásis e desertos no Brasil: da Frente Negra Brasileira aos congressos nacionais sobre a temática afro-brasileira e negra”. Acervo, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 131-146, jul./dez. 2009.

[4] Sobre o movimento Pan-africanismo Abdias Nascimento, em seu pronunciamento como senador, em 06/06/1997, assim o resume: “O pan-africanismo é a teoria e a prática da unidade essencial do mundo africano. Não há nenhuma conotação racista, nessa unidade, que se baseia não em critérios superficiais, como a cor da pele, mas na comunidade dos fatos históricos, na comunidade da herança cultural e na identidade de destino em face do capitalismo, do imperialismo e do colonialismo. O pan-africanismo reivindica a unidade do Continente Africano e a aliança concreta e progressista com a diáspora unida, que incorpora populações asiáticas, como os dravídicos da Índia e os aborígenes australianos, saídos do Continente Africano há dezenas de milhares de anos. E também a nova diáspora negra na Europa, constituída, fundamentalmente nos últimos 30 anos, pela migração procedente da África e do Caribe”. NASCIMENTO, Abdias. Pronunciamento no Senado Federal em 05/06/1997. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/ web/atividade/pronunciamentos/-/p/texto/206794. Acesso em: 5 jan. 2019.

[5] Professora Emérita (2015) Titular da PUC-Rio. Mestrado e doutorado em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1992). Especialização em Sociologia no IUPERJ. Criou o SOCED (Grupo de Pesquisas em Sociologia da Educação). Desenvolveu durante cerca de duas décadas pesquisas sobre a escola básica (1º segmento do ensino fundamental) e condições da escolaridade das camadas populares. Disponível em: https://www.escavador.com/sobre/954667 3/rosaly-hermengarda-lima-brandao-zaia-brandao. Acesso em: 6 jan. 2019.

[6] Compreende-se que a modernidade implica inovações que consagram o desfile carnavalesco como espetáculo, dando-lhe visibilidade social, dentro e fora do país, e participação no mercado de consumo da cultura, que, em 1984, será marcado pela espetacularização e a entrada definitiva das escolas de samba dentro do sistema econômico da indústria criativa cultural no estado do Rio de Janeiro.

[7] Sobre especificamente esta escola de samba ver artigo: “Escola dá Samba? G.R.E.S. Império das Princesas Negras (RJ), uma escola de muito samba no pé!” in: https://carnavalizados.com.br/noticias/escola-da-samba-g-r-e-s-imperio-das-princesas-negras-rj-uma-escola-de-muito-samba-no-pe/. Acesso em: 15 de agosto de 2023.

 

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