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Somos uma humanidade, vivendo em um planeta em comum. Somos potencialmente vulneráveis às mesmas doenças, embora fatores cruciais como renda, sistema de saúde público, predisposição genética e outros alterem drasticamente as probabilidades de desenvolvimento e cura de determinadas doenças. Cada vez mais o espectro de  moléstias contagiosas catalogadas aumenta, assim como sua disseminação por amplas áreas do globo. Doenças emergentes (SARS, COVID,  AIDS) e reemergentes (tuberculose, cólera, dengue) colocam autoridades sanitárias de todo o globo em estado de alerta.

Transformações radicais no meio ambiente, aumento explosivo de concentração populacional, em especial em áreas mais pobres, precariedade de instalações sanitárias para esta crescente população, intenso trânsito de coisas, animais e pessoas (por turismo, negócios ou migração) são alguns fatores a se levar em conta para compreendermos as novas epidemias.

No início da década de 1960, uma doença que assolara vários países no século XIX reemergiu e deu origem a sua sétima pandemia: o cólera. Espalhou-se pelo mundo novamente a partir da Ásia e acabou se tornando endêmica em algumas regiões com adensamento populacional e condições de saneamento precárias. Novas cepas do microorganismo aumentaram sua resistência e seu potencial epidêmico. Em 1991 ela chegou ao Brasil e em 1994 apresentamos o maior número de casos no mundo, registrando quase metade deles, com quase 32 mil nos seis primeiros meses daquele ano. O índice de mortalidade, no entanto, foi bem menor no Brasil (0.7%) do que em países vizinhos como o Peru, por exemplo (1,07%). A região nordeste concentrou a grande maioria dos casos, chegando a 91% de acordo com os dados acumulados entre 1991 e 1996. A informação não surpreende, já que na época, menos da metade dos municípios da região Nordeste estava ligada a rede de água, sendo que na região sudeste este índice alcançava quase 80%. Foram criadas comissões de controle e prevenção ao cólera, e após alguns anos implementando medidas de controle da doença o número de casos começou a diminuir drasticamente. Desde 2006 não há casos autóctones da doença no Brasil.

O cólera é causado pelo vibrio cholerae, uma bactéria que se instala no intestino humano e provoca uma infecção caracterizada por vômito e diarreia. Sua disseminação ocorre principalmente através do consumo de água ou alimentos contaminados com a bactéria, ou com a proximidade regular de pessoas contaminadas. A gravidade da infecção varia, podendo apresentar sintomas leves a gravíssimos, com desidratação intensa por diarreia e morte em pouco tempo, especialmente em crianças. Dados da Organização Mundial de Saúde de 2019 indicam que a doença fora responsável por cerca de cem mil mortes no ano anterior.

O saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição brasileira e pela Lei nº. 11.445/2007, a Lei Nacional do Saneamento Básico. O Plano Nacional de Saneamento Básico vem norteando as políticas públicas para o setor, e é monitorado por duas agências públicas: ANA (Agência Nacional de Águas) e o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento. Entre o ano 2000 e 2008, houve um aumento de cerca de 65% nos domicílios com esgotamento sanitário na região Nordeste, a mais atingida pelo cólera. Em grande parte os investimentos realizados em infra-estrutura sanitária resultaram em menor incidência de doenças resultantes de falta de tratamento da água ou seu limitado fornecimento. A região, contudo, ainda sofre com agudo déficit de atendimento pela rede de esgoto e fornecimento de água, se comparada com as outras regiões do Brasil. Nosso país, aliás, durante a maior parte da sua existência sofreu (e ainda sofre) com a precariedade do saneamento e do fornecimento de água, que ainda reflete a intensa desigualdade entre as regiões e entre  as classes sociais. Dados do ano 2000 indicam um déficit de 13 milhões de domicílios em relação ao acesso a rede sanitária em todo o país.

Em fins do século XIX e início do século XX, o crescimento populacional das cidades e a escassez de mão de obra servil para sustentar um sistema de abastecimento e limpeza basicamente manuais colocaram pressão sobre a modesta estrutura sanitária das nossas cidades, especialmente o Rio de Janeiro, então Capital Federal. As consequências podiam ser vistas na disseminação de doenças relacionadas a falta de higiene e/ ou proliferação de vetores das mesmas (por exemplos, ratos e mosquitos). Devemos lembrar também que durante muito tempo o poder público seguiu diretrizes médicas que determinavam como causas de doenças “miasmas” (emanações) que pairavam sobre as cidades e infectavam indivíduos. Embora algumas medidas para acabar com os miasmas fossem, de forma indireta, adequadas para limitar a proliferação de bactérias e outros agentes infecciosos (enterro rápido de cadáveres, dragagem de regiões alagadas, recolhimento de lixo), elas não bastavam  para acabar com doenças como a cólera, por exemplo, registrada no ocidente pela primeira vez no século XIX.

A primeira Constituição republicana determinava que as administrações locais deveriam se responsabilizar pelas atividades de limpeza e saneamento. No entanto, as dificuldades da maior parte dos municípios logo se fez sentir de forma muito clara, e pouco a pouco o governo federal passou a agir de forma incisiva no setor, mesmo a revelia da legislação vigente. Segundo Monteiro, a criação do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) em 1940 deu “grande impulso para o saneamento no Brasil, pois, pela primeira vez, se estruturava um órgão em nível federal capaz de atuar no planejamento e execução de sistemas de água e esgoto, tratando, inclusive, do financiamento de tais ações.”

Ao longo de todo o século XX, entre avanços e recuos, o governo federal estabeleceu metas e diretrizes no setor de saneamento, cumpridas de forma desigual por todo o território nacional. Segundo Galvão Júnior, na origem das nossas deficiências no abastecimento de água e estrutura sanitária “destaca-se a fragmentação de políticas públicas, a carência de instrumentos de regulamentação e regulação, insuficiência e má aplicação de recursos públicos”. 

O documento que ilustra este texto pertence ao fundo Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Trata-se de um informe do órgão ainda de 1991, acerca da ameaça de disseminação da cólera no continente sul-americano. BR DFANBSB H4.TXT.CEX.647 – Dossiê.

Leitura recomendada

BENATTO, Maria Lucília Nandi et al. A cólera no Brasil de 1991 a 2000: perfil epidemiológico. 2002.

GALVAO JUNIOR, Alceu de Castro. Desafios para a regulação do saneamento básico no Brasil. In: Desafios da Regulação no Brasil. Jadir Dias Proença, Patrícia Vieira da Costa e Paula Montagner (Editores). Brasília: ENAP, p. 275-307. 2006.

Gerolomo, Moacir, & Penna, Maria Lúcia Fernandes. (1999). Os primeiros cinco anos da sétima pandemia de cólera no Brasil: The first five years. Informe Epidemiológico do Sus, 8(3), 49-58. https://dx.doi.org/10.5123/S0104-16731999000300003

MONTEIRO, Renato et al. Análise da evolução da prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de municípios regulados por agências municipais. 2013. Tese de Doutorado.

SAIANI, Carlos César Santejo; TONETO JÚNIOR, Rudinei. Evolução do acesso a serviços de saneamento básico no Brasil (1970 a 2004). Economia e Sociedade, v. 19, n. 1, p. 79-106, 2010.

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