Tensões entre a reforma agrária e a colonização na ditadura empresarial-militar.
Ricardo Braga Brito.
Disputas pela reforma agrária no pré-golpe
Para Schwarz (2012), os anos imediatamente anteriores a 1964 podem ser entendidos como de radicalização e ebulição políticas, conformando um conjunto de experiências coletivas que buscavam integrar os excluídos na participação política. De fato, os anos 1950 e 1960 estiveram marcados por uma série de formas de organização coletiva que transformaram qualitativamente o cenário nacional: greves, ocupações, manifestações e debates públicos se realizaram a partir de atores sociais organizados, mas anteriormente excluídos e invisibilizados, que se faziam presente e demandavam políticas e participação efetiva (Ianni, 1984; Medeiros, 1995; Mattos, 2014).
Conforme Fernandes (2020) e Arantes (2010), foi contra essa politização e ampliação da participação e organização populares que um conjunto de técnicos burocráticos, empresários e militares empreenderam o golpe e a ditadura empresarial-militar (1964-1985). Segundo Dreifuss (1981), esse conjunto de atores estabeleceram propostas políticas e econômicas a fim de impulsionar o desenvolvimento nacional na direção dos interesses empresariais nacionais e internacionais. Planejamentos, reformas estruturais e diferentes políticas públicas se coadunaram com a repressão política e social. É nesse quadro de disputas que a reforma agrária precisa ser entendida.
Entre meados dos anos 1950 até 1964, a participação política e organizada de diferentes grupos camponeses se torna uma importante novidade e pauta nas arenas de disputa por políticas públicas e projetos de sociedade. Tradicionalmente reduzidas à pobreza e ao forte domínio paternalista de grandes proprietários de terra, as áreas rurais passaram a ser sacudidas pela mobilização social organizada. Termos associados ao mundo do trabalho rural, tais como camponeses, lavradores e posseiros se tornaram identidades coletivas que indicavam uma percepção comum de seus principais problemas: expropriação e expulsão de terras, queima e destruição de casas e roças, violências e arbitrariedades dos patrões, relações degradantes de trabalho, métodos de endividamento e escravização, entre outros (Martins, 1981; Medeiros, 1995). Essas identidades foram se construindo em relação àqueles que eram identificados como os causadores desses problemas, tais como grileiros, jagunços, grandes proprietários de terra, especuladores interessados na valorização fundiária frente a expansão urbana e industrial.
A partir dos anos 1950, sobretudo após a criação da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil(Ultab) em 1954, ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), iniciou-se um amplo e radical processo de organização do campesinato. Pode-se destacar o papel do PCB na criação de inúmeras Associações de Lavradores, das Ligas Camponesas nos estados da Paraíba e Pernambuco e dos Círculos Operários ligados à Igreja Católica. Essas organizações disputavam a representação do campesinato, o diagnóstico dos problemas do campo e as soluções a serem demandadas e tomadas, entre elas o conteúdo e amplitude da reforma agrária (Camargo, 2007; Medeiros, 1983).
Com uma linha mais legalista, o PCB teve ampla capilarização, juntando a atuação via mecanismos legais, denunciando a grilagem de terras públicas por grandes proprietários e exigindo a distribuição dessas porções para trabalhadores rurais, mas também com a organização de ocupações de terra, passeatas públicas, distribuição de jornais e pressão no Legislativo junto a partidos aliados. Demandava, ainda, a expansão dos direitos trabalhistas ao campo. As Ligas, por sua vez, instituíram o lema da “reforma agrária radical”, exigindo o uso de terras públicas griladas ou sem uso e a desapropriação de grandes propriedades privadas para a reforma agrária, sendo distribuídas aos trabalhadores e trabalhadoras do campo. Apesar das disputas pela representação do campesinato, pelos significados da reforma agrária e interpretação do papel do campesinato na transformação social, as Ligas e o PCB assumiram pontos de luta em comum no I Congresso Camponês realizado em Belo Horizonte (MG) em 1961 (Costa, 2010).
Também a Igreja Católica e entidades empresariais disputavam a organização dos camponeses e o significado da reforma agrária. Para a Igreja, era preciso organizar e conscientizar os camponeses na doutrina da solidariedade cristã, evitando a “cooptação” por comunistas. Apesar de justas, as reivindicações dos camponeses não poderiam se realizar como luta de classes, devendo haver maior harmonia e conjugação entre trabalhadores e patrões, como expresso no Encontro dos Bispos do Nordeste de 1955. Para as entidades sindicais patronais, tecnocratas e empresários, a reforma agrária deveria ser uma ação pontual, e não um mecanismo de intervenção no campo: o essencial era ampliar incentivos fiscais para a modernização do aparato produtivo, introduzindo maquinários, fertilizantes, disponibilidade de crédito, garantias jurídicas benéficas a proprietários e possibilidades de ampliação da propriedade privada da terra pelas fronteiras agropecuárias (Medeiros, 1983).
É a partir desse quadro de disputas sobre a reforma agrária que podemos apreender a participação de grandes e médios proprietários de terra e suas entidades de representação na realização do golpe e na estruturação da ditadura. Por se tratar de um problema central para o desenvolvimento econômico, a reforma agrária logo ganhou uma lei, o Estatuto da Terra, sancionado em novembro de 1964, sob o governo do primeiro presidente militar da ditadura, Castelo Branco (Bruno, 1995).
O conjunto de empresários, militares e técnicos que elaboraram projetos de governo e de desenvolvimento nos anos 1950 e 1960 também estabeleceu as políticas de reforma agrária e de colonização como elementos mais amplos da política agrária. Na prática, essas duas políticas foram subordinadas aos interesses empresariais identificados na política agrícola, sobretudo na concessão de créditos públicos e no incentivo à modernização do aparato produtivo. As escolhas dos governos ditatoriais caracterizaram a “modernização conservadora” do período: transformação do aparato produtivo; expansão da fronteira agrícola; integração da produção agropecuária com a industrialização; uso de novas técnicas para incrementar a produtividade; acirramento das desigualdades sociais e econômicas associadas à exploração do trabalho, ao êxodo rural imposto aos trabalhadores expulsos, crescimento de conflitos, concentração fundiária e disparidade de recursos entre pequenos, médios e grandes proprietários (Delgado, 2010; Medeiros, 2014).
Entretanto, ainda nos primeiros anos da ditadura é possível identificar a intenção de realizar uma reforma agrária. Essa intenção pode ser vista a partir da atuação de Paulo de Assis Ribeiro, importante membro do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) que passou por inúmeros cargos públicos e que foi presidente do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) entre 1965 e 1967. Em diversos de seus escritos, e nos demais documentos coletados por ele e armazenados no Acervo Paulo de Assis Ribeiro, é possível observar a visão estratégica da reforma agrária e da colonização para o desenvolvimento econômico e para a resolução de conflitos no campo. Em seus trabalhos dos anos 1960 (Ipes, 1964) e em apresentações feita já durante a ditadura para o Ipes e a Escola Superior de Guerra, Ribeiro apresenta critérios técnicos, e na visão desse grupo, ideologicamente neutros que estabelecem zonas prioritárias para reforma agrária. Essas áreas corresponderiam a pouco mais de 5% do território nacional e se concentrariam em áreas de conflito social, onde houve mobilizações camponesas e ocupações de terra. Conforme declaração que preparou para uma entrevista, a reforma agrária busca solucionar um problema fiscal, elevar a produtividade e resolver problemas de “forte pressão demográfica” que geram “focos de insatisfação social” como em algumas regiões “do Nordeste, da Zona da Mata de Minas, de São Paulo e Estado do Rio, e do Rio Grande do Sul e Santa Catarina”.
Apesar da identificação como reforma agrária, as primeiras ações do Ibra se voltaram para a criação e ampliação de projetos de colonização, tendo sido três apresentados como modelo: Alexandre de Gusmão, em Brasília; Caxangá, em Pernambuco; Papucaia, no Rio de Janeiro. Os projetos buscavam delimitar nos menores detalhes as formas de organização e de produção dos parceleiros, orientando os tipos e quantidade de produção e criação, a quantidade de casas, famílias, escolas e igrejas para garantir a transformação do homem rural, frequentemente visto como atrasado, em uma classe média rural (Brito, 2022). Esta classe média seria identificada a partir da sua capacidade de produção e de aplicação dos conhecimentos racionais na produção e na administração da sua propriedade.
De forma mais geral, a política de colonização é uma forma de intervenção pontual e não estrutural que busca selecionar e fixar famílias em áreas rurais determinadas, sobretudo em terras públicas, a fim de ampliar o povoamento e/ou aumentar a produção de alimentos para o consumo interno, constituindo não apenas novos territórios como novos atores sociais (Brito, 2022). Além das intenções, outros documentos identificam um ideal de parceleiro como o homem e sua família de boa condição física, bons costumes e ordeiros, tendo o próprio Ibra, em documento assinado por Ribeiro e enviado para Castello Branco, indicado a necessidade de realizar expulsões e manter uma vigilância política constante sobre os parceleiros. Essas intenções eram compartilhadas por setores militares e empresariais que identificavam os conflitos políticos e a luta pela terra como ameaças à segurança nacional, reforçando a atuação repressiva que aprofundou a modernização conservadora (Martins, 1984; Teló; Medeiros, 2018; Brito, 2022).
Reforma agrária ou colonização?
De uma forma geral, reforma agrária e colonização eram apresentadas com o mesmo objetivo: a formação de uma classe média rural. Contudo, difere nte da reforma agrária, marcada pela desapropriação de propriedades privadas para fins sociais e pressão popular, a colonização é um mecanismo de intervenção pontual e não estrutural. Historicamente a colonização tem sido a opção política do complexo tecno-empresarial-militar para aprofundar a modernização do campo sem realizar transformações na estrutura fundiária e na correlação de forças dessas áreas (Brito, 2022).
Nos discursos mais críticos à política de colonização, de movimentos sindicais e sociais e de técnicos estatais, aponta-se o seu fracasso: ela não modificou a estrutura fundiária brasileira, não deu condições de autonomia às populações beneficiadas, gerou efeitos de valorização fundiária e despejos, baixo número de beneficiados, processos rápidos de titulação que geraram novas formas de expropriação de terras e processos de proletarização, sendo marcada por deslocamentos populacionais e ações pontuais. A reforma agrária reivindicada por grupos camponeses no período da democratização sinalizava não apenas a necessidade de ser ampla, como também irrestrita, imediata e com contínua participação dos grupos camponeses em sua idealização e realização (Medeiros, 2014), contrapondo-se ao modo como historicamente a questão agrária foi tratada.
O silêncio sobre a reforma agrária (Lerrer; Forigo, 2019), as titulações de terra (Alentejano, 2022) e o modelo empresarial de gestão da propriedade rural e da produção em nosso momento atual podem encontrar algumas de suas raízes nos debates e formas de atuação da ditadura. O ímpeto do Ibra em realizar uma reforma agrária através de mecanismos tributários e da colonização buscaram impedir a politização da questão agrária, a atuação organizada dos camponeses e a alteração da estrutura fundiária desigual no Brasil. Devido aos conflitos internos das classes dominantes, esse ímpeto logo foi substituído pela ampliação da modernização do aparato produtivo e preparação da produção agropecuária para o comércio internacional (Brito, 2022). Retomar esse debate se torna fundamental para entendermos os caminhos da questão agrária nacional: os escolhidos até aqui, marcados pelo controle e pelo filtro colocado aos grupos camponeses organizados, e os que podem ser tomados a partir de agora.