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Viviane Gouvêa

Mestre em Ciência Política

Pesquisadora do Arquivo Nacional

Em 1960, 5.6 milhões de brasileiros  elegeram Jânio Quadros (candidato por uma coligação que incluía a conservadora UDN) para a Presidência da República. Na época, não havia o voto vinculado com o cargo de vice-presidente, e o assim o candidato a vice pela chapa adversária (Lott-Jango, do PTB) acabou também sendo eleito.

Seria a última eleição para presidente por quase 30 anos.

Quadros renuncia sete meses depois de assumir, levando o progressista Jango (João Goulart) ao poder. Um golpe militar em 1964 inaugurou o sombrio período da nossa última ditadura escancarada, e assim, apenas no ano de 1989 _ e depois de editada a nova Constituição, em substituição à imposta em 1967 _ o país escolheria novamente seu chefe de estado. Pela primeira vez em dois turnos, e atipicamente solteira (não acompanhada de eleições para outros cargos) o pleito levou ao poder o até então desconhecido Fernando Collor de Melo, governador de Alagoas e candidato pelo irrelevante Partido da Renovação Nacional (PRN), que venceu Luis Inácio da Silva, o Lula, candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), no segundo turno.

Dois anos e meio depois Collor sofreria um impeachment sob pesadas acusações de corrupção.

 

Antes das eleições 

O ano de 1984 foi marcado pela campanha das Diretas Já, uma das maiores mobilizações populares já vistas no Brasil. Organizado por entidades da sociedade civil e partidos políticos, a campanha tinha por objetivo pressionar o Congresso Nacional a aprovar a emenda Dante de Oliveira, que estabelecia eleições diretas para Presidente em 1985. A emenda não passou e Tancredo Neves sagrou-se Presidente no Colégio Eleitoral, embora morresse antes da posse, abrindo espaço para seu vice, José Sarney.

O difícil governo de José Sarney _ impopular, um político conservador e apoiador do regime militar que, em uma aliança casuística com o PMDB (partido do Movimento Democrático Brasileiro)  de Tancredo Neves e por um golpe do destino foi alçado à Presidência da República _, marcado por recessão, inflação e greves frequentes, também foi um período em que a democracia lutava para se estabelecer, a despeito da permanência de velhas práticas autoritárias e de um período marcado pela transição para uma nova Constituição, promulgada em 1988.

Naquele ano, muito analistas percebiam a fragilidade da (re)nascente democracia brasileira e mostravam-se pessimistas quanto ao seu futuro. Pautadas por metodologias e análises tradicionais, tais avaliações citavam o despreparo e a falta de instrução e educação política do eleitor como fator crucial para uma provável derrocada da democracia e origem de instabilidade e polarização crônicas. Embora as eleições presidenciais de 1989 de certa forma confirmassem esta tendência, ao longo dos mais de 20 anos seguintes a democracia brasileira provou sua resistência ao atravessar um impeachment, crises econômicas e a ascensão de um partido de esquerda sem titubear. Até 2014 as tendências à polarização também foram quase imperceptíveis, mas a partir daí o inverso ocorreu, culminando com um impeachment desestabilizador em 2016, e uma campanha eleitoral em 2018 carregada de polarização, discursos de ódio e difamação.

Em 1989, a liberdade inédita estimulou a proliferação de candidaturas. Foram 21; os partidos desejavam testar sua força e potencial ao mesmo tempo em que se utilizavam da campanha para divulgar suas propostas. O tempo disponível no horário eleitoral gratuito (condicionado ao tamanho da bancada dos partidos, respeitado um generoso tempo mínimo) também foi visto como novidade essencial na campanha, assim como os debates televisionados. Algumas personalidades tradicionais da política obtiveram desempenho pífio, como Aureliano Chaves (PFL, Partido da Frente Liberal), e mesmo Ulysses Guimarães (PMDB, Partido do Movimento Democrático Brasileiro), candidatos dos maiores partidos da época, que não alcançaram 5% dos votos no primeiro turno. Mas Leonel Brizola (PDT, Partido Democrático Trabalhista), personalidade histórica, aliado de João Goulart e perseguido pela ditadura por pouco não vai para o segundo turno, tendo sido superado pelo líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva por uma diferença menor que 1%. 

 

Campanha

O primeiro turno foi realizado no feriado de 15 de novembro, o último pleito a ser realizado nessa data _ ele voltaria para outubro, mês eleitoral por excelência antes do golpe de 1964. O segundo turno realizou-se em 17 de dezembro. As cédulas ainda eram em papel, mas a gênese da notória eleição eletrônica (a maior do mundo) encontra-se na informatização do sistema de totalização de votos. Iniciado 3 anos antes pela Justiça Eleitoral com o recadastramento eleitoral, adoção de um cadastro único e a criação de um novo título, o sistema deu início a automação de todo o processo, embora o preenchimento dos mapas ainda fosse feito manualmente. 

A oposição ao governo Sarney e o permanente estado de crise do país deu o tom da campanha. Contudo, as diferentes percepções acerca de uma crise vista e apresentada como econômica, social e moral _ talvez mais do que tudo _ e das soluções possíveis forneceram as chaves para as campanhas de maior sucesso. Fernando Collor de Melo, do PRN baseou toda a sua campanha na “caça aos marajás” e no combate à corrupção, aliás, de forma bastante semelhante ao último presidente eleito, Jânio Quadros.

As pesquisas realizadas entre o eleitorado indicavam que a corrupção era vista como um dos nossos maiores problemas, e que o candidato ideal seria alguém não comprometido com o sistema político tradicional, que mostrasse indignação diante da roubalheira generalizada e força para enfrentá-la. Alguns candidatos, de esquerda e de direita, poderiam se encaixar genericamente nesse perfil: o líder sindical Lula, o comunista Roberto Freire, o ruralista Ronaldo Caiado, por exemplo, eram vistos como forças de renovação, apesar do reacionarismo das propostas de Caiado. Collor, político desconhecido, percebeu seu potencial na disputa, e passou a chamar a atenção sobre si com atos extravagantes e críticas ferozes ao governo, e a construir uma imagem de homem jovem, sem compromissos com a velha política, sujeito sem manchas no passado, ao mesmo tempo um valente “machão” à velha moda, esportista dinâmico e político moderno.

A campanha de Lula carregava nas tintas das injustiças sociais. Vindo do movimento operário, chegou a ser preso nos estertores da ditadura e durante o renascimento do sindicalismo no ABC paulista que daria origem ao Partido dos Trabalhadores (PT), agremiação fundada por intelectuais de esquerda e sindicalistas, recebendo também relevante ala da esquerda católica. Para um país recém-saído de uma ditadura militar de extrema direita, Lula era visto como uma opção impensável, e dizia-se que os militares jamais o deixariam tomar posse caso ganhasse. Mas seu apelo popular era forte: assim como Collor, um homem jovem (ambos na casa dos 40 anos) desconectado com a “velha política” e indignado com o descalabro que reinava no país.

A maioria do empresariado e da grande imprensa posicionava-se de forma mais ou menos aberta contra a candidatura de Lula, lançada pela coligação Frente Brasil Popular (PT, Partido Comunista e Partido Socialista Brasileiro), embora não vissem com bons olhos a provável eleição de Fernando Collor, tido como aventureiro e inexperiente. Com histórico de liderança sindical, sua imagem era associada às greves, que a mídia sempre mostrou como simples baderna de fábrica. Sua inexperiência política era frequentemente ressaltada (um contraponto ao aspecto de desconexão com os políticos tradicionais, mais experientes mas muito mais corruptos e distantes do povo) e o seu partido, acusado de “extremista”. Até mesmo sua aparência física, sua voz eram alvo constante de deboche e desqualificação nas páginas das revistas e jornais da época.

 

Pesquisas e propagandas

Desde muito cedo na campanha Fernando Collor liderou as pesquisas. Instalado confortavelmente em primeiro lugar, negou-se a participar de debates televisivos que poderiam, ao expor a fragilidade das suas propostas e a incoerência do seu histórico, carregado de acusações de corrupção, diminuir sua vantagem na corrida. Os debates, assim, acabaram por se tornar espaços de disputa pelo segundo lugar, pelo direito de ir para o segundo turno com Collor, durante os quais as propostas não foram discutidas e as calúnias vicejaram. 

No segundo turno os ataques pessoais ganharam ainda mais peso, uma vez que a polarização aumentou, com Lula ganhando o apoio de outros candidatos progressistas, como Mário Covas (PSDB, partido criado por uma dissidência do PMDB) e o velho cacique Leonel Brizola (PDT, herdeiro do trabalhismo do PTB de Vargas e Jango). O PRN, a grande imprensa e o empresariado em peso jogaram contra o candidato do PT, trazendo a tona histórias e boatos da vida pregressa do candidato. Em um episódio especialmente aviltante, uma ex-namorada de Lula afirmou no programa eleitoral do PRN que Lula a pressionara a abortar quando ela estava grávida de Lurian, filha do casal então com 15 anos. Depois das eleições, a revista Isto é/ Senhor esclareceu que o caso fora uma grande farsa inventada pela assessoria de imprensa de Collor e a mando de seu irmão Leopoldo, que haviam pago quantia não esclarecida à ex-namorada de Lula para que fizesse tais declarações.

Este foi apenas um entre vários eventos de difamação contra o candidato progressista.

A mídia mostrou-se player fundamental nas eleições, e assim seria durante as décadas seguintes. O horário eleitoral gratuito, de veiculação obrigatória, também foi fundamental. Nesse sentido, a coligação que apoiava Lula (Frente Brasil Popular) compreendeu a importância da linguagem televisiva e produziu um material dinâmico que escapava do tédio generalizado do horário eleitoral. A TV Povo, paródia da TV Globo, apresentava os programas “Povo Repórter”, com reportagens-denúncia, “Povo de Ouro” (uma alusão ao musical global “Globo de Ouro”), “Povo na TV” e “Onda Lula.” O jingle da campanha de Lula foi tão marcante que se tornou o eterno hino do candidato, ressurgindo na vitoriosa campanha de 2022. A presença televisiva do PT foi bastante eficiente e se refletiu no aumento das intenções de voto ao longo da campanha, posto que iniciou com apenas 7% e terminou em segundo lugar, com pouco mais de 16%.

Por seu turno, Fernando Collor, com uma campanha “colorida”, slogans e logos chamativos, um vice moderado oriundo do segundo maior eleitorado do Brasil (o mineiro Itamar Franco) e o apoio do empresariado _ a quem prometia um país moderno, com um capitalismo mais “flexível” (em outras palavras, menos regulamentado) _ ganhava crescente espaço na mídia e consolidava sua liderança na corrida. Pregava ainda a redução do Estado, a moralização política, a caça aos servidores públicos “privilegiados” e a abertura da economia ao mercado externo. Sua coligação de apoio, Brasil Novo, incluía além do seu partido PRN, outras legendas menores: PSC (Partido Social Cristão), PST (Partido Social Trabalhista), e o PTR (Partido Trabalhista Renovador).

Um episódio insólito ocorreu já na reta final do primeiro turno, quando o empresário e dono de uma rede de televisão Sílvio Santos lançou-se candidato a poucas semanas do pleito. O PFL, percebendo o fracasso da candidatura de Aureliano Chaves, tenta lançar Santos por um partido menor, Partido Municipalista Brasileiro (PMB), cujo candidato, Armando Correia, dispunha-se a renunciar. Imediatamente dezoito pedidos de impugnação questionaram a legalidade de todo este processo, a começar pela filiação tardia de Sílvio Santos ao pequeno partido, sem falar que o PMB não tinha seu registro regulamentado. A decisão do Tribunal Superior Eleitoral de fato suspendia, faltando menos de uma semana para o primeiro turno, a candidatura por todo o processo ter sido realizado fora dos prazos devidos.  

A campanha no segundo turno foi acirrada, polarizada e um momento em que muitos empresários fizeram declarações abertas de deixar o país caso Lula vencesse. A maior rede de televisão do país, a Rede Globo, editou de forma escandalosamente parcial o último debate antes da eleição final, em um momento em que não havia mais espaço ou tempo para uma retificação ou contra-ataque por parte da “TV Povo.” Em alguns momentos as pesquisas de intenção de voto indicaram um empate técnico, mas a boca de urna (realizada com os eleitores no dia da eleição) trouxe índices bem próximos do resultado final: 53% para Collor, 47% para Lula. Vitória do "Caçador de Marajás" de agenda liberal do ponto de vista econômico, conservador do ponto de vista social.

 

Décadas depois

A histórica eleição para Presidente da República de 1989 contou com eleitores analfabetos pela primeira vez, assim como  jovens de 16 e 17 anos  (voto opcional). Quase metade dos eleitores ainda não chegara aos 30 anos e jamais havia votado antes. A partir daquele momento, e até 2018, as “novidades” diminuíram; a paulatina implantação da eleição eletrônica talvez tenha sido a maior delas. Na década de 1990, o PSDB de Mário Covas e do Presidente (1995-2003) Fernando Henrique Cardoso dominou as eleições presidenciais. Uma inversão ocorreu em 2002 quando, na terceira tentativa Lula sagrou-se Presidente, sendo reeleito em 2006 e ainda, em 2010 consagrando sua sucessora Dilma Roussef, reeleita em 2014. Foram 20 anos de eleições pacíficas, com baixa polarização, disputadas na prática por apenas 2 partidos (PT e PSDB) e sem questionamentos em relação a lisura de todo o processo eleitoral.

Em 1960, Jânio Quadros elegeu-se com uma campanha intensamente baseada no combate à corrupção, com uma agenda moralista e um discurso de outsider. Renunciou após somente sete meses. Collor de Melo apostou pesadamente no ataque aos “marajás” e corruptos, apresentando-se como uma novidade sem amarra com o sistema político tradicional. Sofreu um impeachment menos de 3 anos depois da posse. Traçar um paralelo entre estes dois desastres pode servir de alerta ao eleitorado: raramente um político que se candidata a presidente surge, de fato, do nada, em total descompromisso com o sistema político que tanto acusa de decadência. Mais raramente ainda políticos que conseguem uma ascensão meteórica embalados por discursos simplistas contra a corrupção (um mal endêmico no país mas de raízes muito mais complexas do que palavras e calúnias ditas através das telas) mostram real interesse em combate-la, e inevitavelmente acabam expostos em sua hipocrisia.

O Arquivo Nacional possui acervo sobre as eleições de 1989 e outras, anteriores e posteriores. Este texto utilizou documentação escrita do SNI (Serviço Nacional de Informações) e áudios do IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas). A contraposição  entre documentos produzidos por uma agência de inteligência de um governo ainda atrelado ao seu passado ditatorial e militar, e uma ONG (Organização Não Governamental) comprometida com os movimentos sociais aprofunda o debate sobre a campanha daquele ano notável.  Outros fundos, ainda não organizados, certamente apresentam outro tipo de documentação, inclusive filmes e fotografias, fundamentais para conhecermos o período.

Ver a bibliografia aqui.

 

 

 

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