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Em 1969 a Rede Globo (transformada em rede de emissoras afiliadas em setembro daquele ano) produz uma novela inspirada em um notório romance norte-americano intitulado A Cabana do Pai Tomás (Uncle Tom's Cabin, romance de Harriet Beecher Stowe lançado em 1852), um libelo contra a escravidão ambientado no sul escravocrata dos Estados Unidos. Com algumas alterações em relação ao romance original, a novela girava em torno de um casal de protagonistas, os escravizados de origem africana Pai Tomás e Cloe. Exibindo conflitos na região de plantation algodoeira do sul dos Estados Unidos, a história pretendia mostrar os horrores advindos de um sistema escravista baseado em preconceitos de cor.

Um detalhe: o personagem principal e fio condutor da história, o escravizado negro Pai Tomás, foi vivido por Sérgio Cardoso, um ator branco, que fez uso de maquiagem (“blackface”) para incorporar o protagonista. Embora a personagem feminina central (que não recebia o mesmo destaque do masculino) fosse a atriz negra Ruth de Souza, fato inédito até então, a escolha do ator branco acabou aglutinando as polêmicas na época. Mesmo antes de sua estreia era alvo de críticas, com o ator e dramaturgo Plínio Marcos liderando uma campanha de repúdio através da sua coluna Navalha na Carne, do jornal Última Hora. A “explicação” para a escolha do ator branco residia na influência da patrocinadora da novela, a norte-americana Colgate-Palmolive, cuja agência de publicidade no Brasil exigiu a escolha de um ator branco.

Representações racistas da população de origem africana perduram na televisão brasileira, apesar das dramáticas transformações ocorridas desde então _ na TV e na sociedade. Além das imagens estereotipadas dos negros e da cultura de matriz africana, há um outro problema talvez tão resistente a mudanças (ou talvez, mais resistente): a sub-representação da população negra. Até hoje os personagens nas novelas (e outros programas televisivos, inclusive jornalísticos) são majoritariamente brancos, contrariando o perfil demográfico brasileiro, distante do ideal europeu (quando não, nórdico) predominante nas novelas, especialmente entre os protagonistas.

Durante décadas os atores negros apareciam nas novelas apenas para viver personagens escravos, nas novelas de época, ou empregadas (os) domésticos, nos dramas urbanos, a despeito de exceções pontuais. É praticamente unânime entre os pesquisadores acadêmicos (sendo que a pesquisa de Zito Araújo citada ao final do texto apresenta um amplo painel a esse respeito) que, especialmente até a década de 1990/ 2000, a imensa maioria dos papéis em telenovelas vividos por atores negros representava posições subalternas da sociedade, além de em geral serem pouco complexos e pouco interferirem na trama. Apenas em 1996, na novela Xica da Silva (TV Manchete) uma atriz negra ganha o papel principal (uma escrava _ emancipada e rebelde, mas ainda uma escrava), e em 2004 Da cor do pecado (Rede Globo) apresenta uma protagonista negra e não-escrava em telenovela brasileira. A virada para o século XXI marca a multiplicação de núcleos de personagens negros nas telenovelas e o aumento da participação efetiva desses personagens na trama, incluindo alguns (poucos) protagonistas.

Além da presença escassa de personagens afrodescendentes, a telenovela _ um gênero televisivo que se dispõe a mostrar a realidade de quem a assiste _ ao longo da maior parte da sua trajetória incorporou e reproduziu preconceitos enraizados na sociedade brasileira acerca das relações raciais, escamoteando todo o conflito existente relacionado ao racismo estrutural na sociedade brasileira. Mostrando nas telas da TV uma versão “moderna” do mito da democracia racial, as novelas buscavam cooptar o seu público para o ideal de sociedade pacífica e conciliadora que vendiam _ consoante, aliás com todo o projeto de modernização excludente implementado pelos governos militares cuja atuação coincidiu com a ascensão da TV como entretenimento principal da família brasileira, nos anos 1970.

As representações estereotipadas de personagens negros (a mulata sensual, a empregada doméstica ignorante, o marginal, a “mãe preta”), a sub-representação e a lógica conciliatória das relações inter-raciais em um país racista constituem o que Muniz Sodré chama de racismo midiático. Embora a partir do início do século as tentativas de espelhar o mito da democracia racial pacífica tenham diminuído, elas absolutamente cessaram, e apesar do aumento do número de protagonistas negros (foram 13 entre 2004 e 2019 na TV Globo, entre 150 novelas produzidas no período), ainda assim é uma proporção irrisória em relação ao perfil demográfico da população brasileira e mesmo de quem assiste atualmente as telenovelas de canal aberto.

O racismo encontra-se enraizado na sociedade brasileira e esse fato é anterior ao surgimento da televisão, que, no entanto, o incorpora e tende a reproduzi-lo. Contudo, se em relação a outros aspectos sensíveis às parcelas mais conservadoras da sociedade (homossexualidade, igualdade de gênero, por exemplo) a TV tem se mostrado mais permeável a discussões e questionamentos críticos, no que toca ao preconceito racial nosso de cada dia a questão é um pouco diferente, e percebemos claramente um atraso na iniciativa de realizar o que atualmente chamamos de marketing social em relação às nossas questões raciais.

Mais do que inocente entretenimento, as telenovelas (mesmo hoje, em meio ao crescente domínio do digital e do streaming) constroem modelos de pensamento, ação e identidade que são tidos como aceitáveis e/ ou desejáveis que, em uma sociedade altamente midiatizada, desempenham um papel fundamental na construção do consenso e na manutenção das relações sociais existentes.

Na imagem, jornal com entrevista de Abdias do Nascimento, ator e dramaturgo fundador do Teatro Experimental do Negro em 1944, sobre o preconceito racial na TV. Fundo Maria Beatriz Nascimento.

Fotografia da atriz Ruth de Souza na peça Aruanda, produzida pelo Teatro Experimental do Negro, s.l [194-]. ANRIO_PH_0_FOT_44216_ Correio da Manhã.

 

ARAÚJO, Joel Zito. A negação do Brasil. O negro na telenovela brasileira. 2.ed. São Paulo: Senac, 2004.

DE FARIA, Maria Cristina Brandão; DE ANDRADE FERNANDES, Danubia. Representação da identidade negra na telenovela brasileira. In: E-Compós. 2007.

GRIJÓ, Wesley Pereira; SOUSA, Adam Henrique Freire. O negro na telenovela brasileira: a atualidade das representações. Estudos em Comunicação, v. 11, n. 1, p. 185-204, 2012.

SODRÉ, M. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

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