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A última década do século XX e a primeira do XXI foram tomadas por discussões acaloradas entre linguistas, filólogos, acadêmicos, jornalistas, escritores, tradutores, estudantes e outros setores da sociedade sobre o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990 por representantes de países lusófonos, a saber: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe[1]. O tratado internacional teve como objetivo criar uma ortografia unificada para a língua portuguesa, a ser utilizada por todos os países signatários. De acordo com o preâmbulo do acordo, a unidade ortográfica do português contribuiria para aumentar o prestígio internacional da língua, além de potencializar o seu uso.

O tratado entrou em vigor em 2009 no Brasil e em Portugal, mas ainda está longe de ser um consenso, havendo quem aponte lacunas e erros ou conteste sua adequação ou necessidade. Essa não foi a primeira vez que a língua portuguesa foi alvo de debates e negociações em torno de normas comuns internacionais que norteassem a ortografia oficial de todos os países lusófonos. A situação remonta ao ano de 1911, quando foi adotada, em Portugal, a primeira reforma ortográfica da língua portuguesa. Até então, seguia-se uma ortografia baseada em palavras latinas e gregas. A reforma simplificou a língua escrita, modificando completamente o seu aspecto: pharmacia, phosphoro, estylo, prohibir, alumno foram substituídos por farmácia, fósforos, estilo, proibir, aluno entre outras alterações, buscando uma ortografia fonética das palavras.

Tal reforma ortográfica não se estendeu ao Brasil; por não ter sido ouvido durante as discussões da comissão que estabeleceu as normas da reforma, o país optou por ficar de fora. A decisão levou ao estabelecimento de uma mesma língua, mas com escritas completamente diferentes: Portugal com uma ortografia reformada, o Brasil mantendo a ortografia de base etimológica. Somente vinte anos depois, firmarem-se as bases para um acordo entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa, que seguiam muito próximas às propostas introduzidas pela reforma de 1911.

Essa tentativa de um primeiro acordo em 1931 foi interpretada de forma diferente nos vocabulários ortográficos produzidos por ambos os países: em Portugal foi elaborado o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1940; no Brasil, o Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1943. No entanto, continuavam a conter algumas divergências e, em 1945, um novo encontro deu origem ao Acordo Ortográfico de 1945, que se tornou lei em Portugal, mas, no Brasil, não foi ratificado pelo Congresso Nacional, pois trazia procedimentos de representação gráficas não familiares aos brasileiros como o uso de consoantes mudas. E, assim, segundo Maria Helena de Moura Neves, “de dois acordos, nasceu o desacordo, o Brasil com a proposta de 1943 e Portugal com a de 1945” [2].

A unificação entre as duas grafias foi longamente debatida por intelectuais, escritores, filólogos, jornalistas e políticos no Brasil ao longo dessa primeira metade do século XX. O Arquivo Nacional guarda em seu acervo documentos que lançam luz sobre as tratativas em torno da simplificação e de uma unidade para a língua portuguesa. No fundo arquivístico do advogado e estatístico brasileiro, Mário Augusto Teixeira de Freitas, de origem privada, podemos encontrar boletins, cartilhas, memoriais, recortes de jornais, formulários, entre outros documentos que tratam dos acordos ortográficos referendados no período e as discussões em torno de sua adesão ou não pelo Brasil. Como esse estudo (imagem acima), feito por vários colaboradores que critica a atitude do governo brasileiro de não aplicar o acordo ratificado em 1945.

O fundo guarda, por exemplo, exemplares do boletim ortográfico Ô-Sê-Bê, elaborado pelo general Bertoldo Klinger. O periódico tinha como objetivo vulgarizar a Ortografia Simplificada Brasileira, criada pelo general em 1940, e cuja ideia central era "simplificar" e "racionalizar" a língua portuguesa ao se estabelecer para cada fonema apenas um grafema (letra). Klinger foi, por muitas vezes, motivo de chacota pela imprensa nacional por conta de sua proposta, mas, até hoje, sua obra Ortografia simplificada brasileira: simplificada e uniformizada tem servido de referência para estudiosos da língua portuguesa.

Na década de 1970, novas tentativas foram realizadas no intuito de reduzir as divergências ortográficas entre os dois países e alterações na acentuação foram realizadas tanto no Brasil, quanto em Portugal. Mas apenas em 1990, as delegações dos sete países lusófonos reuniram-se em Lisboa para elaborar as bases do novo acordo ortográfico. Além de Portugal e do Brasil, também São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Timor-Leste, Guiné-Bissau e Moçambique já ratificaram o Acordo Ortográfico de 1990, embora estes últimos não o tenham ainda aplicado. Angola é o único país da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em que o governo ainda não aprovou o Acordo Ortográfico.

É importante lembrar que a língua falada é viva, naturalmente sujeita a mudanças constantes e variações, em função da evolução cultural dos seus usos e dos novos desafios do intercâmbio internacional, que vão transformando o idioma e apartando a oralidade da sua escrita alfabética, essa sim artificial e imposta. De acordo com Lola Geraldes Xavier[3], não é pacífica a convivência entre o falado e o escrito. O atual acordo já passou por algumas atualizações desde a sua assinatura em 1990 até a sua completa implantação vinte e cinco anos depois.  Mas apesar de falhas técnicas apontadas por especialistas e lacunas a serem preenchidas, como a elaboração de um vocabulário ortográfico comum, “tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível”, o acordo é fundamental para a padronização da língua portuguesa, patrimônio de todos aqueles que a utilizam, uma criação coletiva de portugueses, africanos, brasileiros e povos asiáticos, em constante construção.

Leia mais em:

ESTRELA, E. (1993). A questão ortográfica — reforma e acordos da língua portuguesa. Lisboa: Editorial Notícias.

NEVES, Maria Helena de Moura. O acordo ortográfico da língua portuguesa e a meta de simplificação e unificação. DELTA [online], 2010.

TEYSSIER, Paul. História da Língua Portuguesa. 1ª Edição. Martins Editora. São Paulo, 2007.

XAVIER. Lola Geraldes. A língua portuguesa em evolução: os Acordos Ortográficos. Actas do Primeiro EIELP, 2010.

 

 

[1] Timor-Leste aderiu ao acordo em 2004, após recuperar sua independência.

[2] NEVES, Maria Helena de Moura. O acordo ortográfico da língua portuguesa e a meta de simplificação e unificação. DELTA [online]. 2010, vol.26, n.1, pp.87-113. ISSN 0102-4450.

[3] XAVIER. Lola Geraldes. A língua portuguesa em evolução: os Acordos Ortográficos. Actas do Primeiro EIELP, 2010.

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