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O universo particular dos arquivos da repressão como territórios de memória

Izabel Pimentel da Silva

Doutora em História Social (UFF)

Pós-Doutoranda em História Social/ bolsista PNPD-CAPES (UERJ-FFP)

Professora na graduação e na pós-graduação em História Social (UERJ-FFP)

 

As ditaduras civil-militares sul-americanas possuíam uma grande estrutura burocrático-militar responsável pela elaboração de distintos registros e organização de arquivos. No caso da ditadura brasileira, especificamente, os altos comandos militares iniciaram a construção de uma estrutura policial-burocrática, calcada na espionagem, coleta de informações e operações policiais e voltada, sobretudo, para a captura e interrogatório dos opositores políticos do regime, incluindo, entre seus métodos, o uso sistemático da tortura.[1]

Essa complexa estrutura – constituída por instituições policiais, militares e de inteligência e responsável pela imposição de uma “cultura do medo” baseada no controle, vigilância e violência – produziu um significativo arcabouço documental (PADRÓS, 2007, p.380), que constitui hoje os chamados arquivos da repressão. Nesse sentido, o Brasil é “detentor do maior conjunto documental de origem pública sobre a repressão política na região sul-americana” (STAMPA; SANTANA; RODRIGUES, 2014, p. 54). E o Arquivo Nacional preserva, em seu rico acervo, um número bastante significativo desses arquivos da repressão.

Nesse texto, pretendemos analisar, a partir dos documentos produzidos pelos organismos da estrutura burocrático-militar da ditadura e disponíveis para consulta no Arquivo Nacional, o olhar dos órgãos de inteligência e repressão da ditadura brasileira acerca das esquerdas revolucionárias da América do Sul, cuja atuação também foi uma das principais marcas do cenário político sul-americano. E ainda, discutir como esses acervos configuram-se como territórios de memória, na medida em que são espaços de disputas acerca dos distintos sentidos do passado, colocando em pauta de discussão as relações entre arquivos, história e memória.

Dentro do campo das esquerdas revolucionárias sul-americanas que atuaram na década de 1970, destacaremos especificamente a documentação produzida pela ditadura brasileira acerca da Junta de Coordinación Revolucionária (JCR), uma organização revolucionária internacionalista fundada oficialmente em 1972 e integrada por quatro dos mais significativos grupos da esquerda armada sul-americana: o Movimiento de Liberación Nacional-Tupamaros (MLN-T do Uruguai); o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR do Chile); o Ejército Revolucionário del Pueblo (ERP da Argentina) e o Ejército de Liberación Nacional (ELN da Bolívia).

As organizações revolucionárias que compunham a Junta de Coordinación Revolucionaria compartilhavam o que chamamos de uma cultura política guerrilheira latino-americana, baseada em um conjunto de postulados teóricos e práticos em comum, que fortalecia uma identidade guerrilheira entre seus militantes: o internacionalismo, o latino-americanismo, o antiimperialismo, o resgate da figura dos libertadores da América e a atualização de sua luta (defendendo uma segunda independência na América Latina), a adoção da luta armada, encarada como o único caminho que conduziria à derrocada do imperialismo e do capitalismo e a defesa do caráter imediatamente socialista e continental da revolução vinculado aos movimentos de libertação do então chamado Terceiro Mundo, inserida em uma luta global dos povos contra a opressão imperialista. No entanto, com a intensificação da repressão, sobretudo após os golpes militares no Uruguai e no Chile em 1973 e na Argentina em 1976, as possibilidades de atuação da JCR ficaram cada vez mais restritas no Cone Sul. Os remanescentes da organização partiram para o exílio, espalhando-se por distintos países, num processo que representou a desagregação, a dissolução, o afastamento, o fim. De qualquer maneira, em que pese o fracasso de sua experiência, a Junta de Coordinación Revolucionaria representou o auge do internacionalismo revolucionário na América Latina na segunda metade do século XX (SILVA, 2018).

Embora a Junta de Coordinación Revolucionaria tenha deixado de existir no final da década de 1970, para os serviços de inteligência do Brasil, a JCR representava um perigo que rondava as fronteiras nacionais, um inimigo, ainda vivo, a ser combatido. Nesse sentido, localizamos no acervo do Arquivo Nacional dezenas de documentos produzidos pelos serviços de inteligência no Brasil, que orientavam as operações de repressão, alertando para os contatos entre membros da Junta de Coordinación Revolucionaria com as organizações da esquerda brasileira e para o perigo da entrada de militantes estrangeiros no Brasil, em especial aqueles que supostamente estariam encarregados de estabelecer a JCR em solo nacional.

O que mais nos chama atenção ao investigar essa documentação é que ela foi produzida no final da década de 1970 e início da década de 1980, quando a JCR não mais existia nem na América do Sul nem nos diversos países por onde seus militantes espalharam-se durante o exílio. Por sua vez, este período correspondia ao momento de abertura política no Brasil, no qual as esquerdas revolucionárias – que já tinham sido dizimadas desde a primeira metade da década de 1970 – passaram por um processo de autocrítica e abandono da luta armada, engajando-se na luta pela anistia política e pelas liberdades democráticas.

Os relatórios do Serviço Nacional de Informação (SNI) de 1979 denotam preocupação com o suposto apoio da JCR aos movimentos de resistência à ditadura no Brasil, o que incluiria o financiamento de organizações da esquerda brasileira. Segundo os documentos, o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), por exemplo, teria solicitado a quantia de 60 mil dólares à JCR a fim de investir em atividades políticas no país[2] ( documentos 1 e 2). Os informes do SNI e do Centro de Informações do Exército (CIE) de 1980 e 1981 revelam ainda supostas reuniões da Junta de Coordinación Revolucionaria no Brasil (no Rio Grande do Sul, em Goiás e no Ceará), a fim de estreitar os laços com as organizações brasileiras e inserir-se no cenário político brasileiro durante o período de abertura, sem, no entanto, abandonar a perspectiva de luta armada[3]. (Documentos 3, 4, 5 e 6)

Os documentos elaborados pelos órgãos de inteligência brasileiros na primeira metade da década de 1980 alertavam também para o perigo da entrada de armas no Brasil trazidas por militantes da JCR e ainda para os supostos planos de instalação de uma fábrica clandestina de armas em território nacional por militantes brasileiros vinculados à Junta de Coordinación Revolucionaria.[4] (Documentos 7 e8)

Ainda que a JCR já tivesse se dissolvido e apesar do fato de nenhuma organização brasileira ter ingressado como membro da Junta, a ditadura brasileira parecia estar continuamente preocupada com ação de militantes revolucionários latino-americanos em território brasileiro, especialmente durante o complexo processo de transição política à democracia. Nesse contexto, a circulação de militantes revolucionários da América do Sul representava, em sua ótica, uma ameaça à ordem e segurança nacionais. As fronteiras deveriam ser vigiadas e a chegada de exilados políticos monitorada. Neste cenário, a Junta de Coordinación Revolucionaria aparecia como uma ameaça de nível elevado, pois seus projetos revolucionários ultrapassaram fronteiras nacionais.

No entanto, como mencionamos, a documentação produzida pelos órgãos de inteligência brasileiros que apontava para o perigo da instalação da JCR no Brasil, sua articulação com as esquerdas brasileiras e sua inserção no palco político nacional data do final da década de 1970 e, sobretudo do início da década de 1980, quando a luta armada já estava derrotada no Brasil e a JCR não mais existia na América do Sul ou em outras partes do mundo.

Neste sentido, podemos inferir que, ao invés de demonstrar uma fantasia ou imaginação da ditadura brasileira, a constante preocupação com a Junta de Coordinación Revolucionaria poderia representar, por um lado, um pretexto para controlar os exilados latino-americanos que se encontravam no Brasil e, por outro, um mecanismo dos setores mais conservadores dos militares para alardear um “perigo vermelho” e frear o processo de abertura “lenta, gradual e segura” que se iniciava no Brasil. Ancorando-se nas prerrogativas da Doutrina de Segurança Nacional, a ditadura civil-militar brasileira construiu a imagem dos militantes sul-americanos como um inimigo a ser combatido, um “perigo” que rondava as fronteiras reais e imaginadas da segurança nacional, criando, assim, mecanismos de autojustificativa do aparelho repressivo.

Os documentos utilizados nesse texto, disponíveis para consulta no acervo do Arquivo Nacional, compõem o que se convencionou chamar de arquivos sensíveis[5], que incluem os documentos “produzidos em regimes repressivos ou totalitários, nos quais os direitos humanos e as liberdades são violados” (THIESEN, 2012, p. 3).    

A abertura e o acesso a estes conjuntos documentais, sobretudo aos produzidos pela repressão, estão relacionados às políticas de memória adotadas pelas sociedades contemporâneas em períodos de redemocratização, no bojo da chamada Justiça de Transição[6]. A existência, organização, preservação e difusão destes arquivos e seus acervos exercem quatro importantes funções nas sociedades que vivenciaram o processo de redemocratização. Em primeiro lugar, estes documentos, que originalmente foram produzidos para incriminar indivíduos ou grupos, hoje servem para compensar as vítimas das arbitrariedades das ditaduras. Em segundo lugar, essa documentação também pode ser utilizada como prova na responsabilização dos agentes envolvidos em crimes de sequestro, tortura, assassinato e desaparecimento de opositores políticos. Em terceiro lugar, esses documentos se converteram em fontes para a pesquisa histórica. E, por fim, esses acervos também têm sido utilizados com funções pedagógicas, por exemplo, no ensino de história das ditaduras e em ações pedagógicas que promovam uma cultura democrática e de respeito aos Direitos Humanos. Por suas especificidades e por estas distintas funções sociais, os arquivos sensíveis representam um caso paradigmático no mundo dos arquivos (CATELA, 2002a, p. 210-213).

Ao utilizar esses arquivos como fontes primárias para a pesquisa histórica, em especial os acervos dos arquivos da repressão, precisamos compreender o universo particular desses documentos sensíveis. Eles foram produzidos, essencialmente, “para incriminar o oponente político e atacá-lo moralmente” (QUADRAT, 2012, p. 201). Embora se trate de documentos autênticos, não é possível garantir a veracidade das informações neles contidas (THIESEN, 2012, p. 7). Além disso, os documentos da repressão refletem os e são refletidos pelos princípios conservadores, que norteavam a ditadura civil-militar brasileira. O vocabulário, os preconceitos, os juízos de valor e a defesa da “moral e dos bons costumes” que permeiam essa documentação nos informam “não apenas sobre uma ditadura, mas refletem também os valores da própria sociedade na qual o governo autoritário estava inserido” (QUADRAT, 2012, p. 202). Portanto, documentos da repressão falam mais sobre os órgãos de repressão e inteligência do que sobre as pessoas e organizações vigiadas por eles (QUADRAT, 2012, p. 202).  

Os documentos sensíveis, incluindo os arquivos da repressão, não devem ser encarados, como destacou Icleia Thiesen, como tesouros que nos garantem a “verdade” dos fatos ocorridos durante a ditadura civil-militar, nem devem ser descartados como miragens que atrapalham ou comprometem a pesquisa histórica (THIESEN, 2012, p. 7-10). Nem tesouros, nem miragens. Os documentos da repressão, como ressaltou o historiador Carlos Fico, representam “a memória do arbítrio” (FICO, 2012, p. 58).

Ao analisar a produção documental da ditadura civil-militar brasileira, também devemos partir da perspectiva que concebe os arquivos como territórios de disputas acerca dos distintos sentidos do passado, colocando em pauta de discussão as relações entre arquivos, história e memória. Os arquivos e seus acervos não devem ser encarados como entidades neutras ou estáticas ou ainda como restos do passado, mas como produtos das sociedades que os “fabricam” (CATELA, 2002a, p. 219), inseridos em um campo marcado por disputas políticas e tensões sociais, que envolvem, inclusive, a preservação (ou o descarte) e a abertura (ou restrição) de seus conjuntos documentais.

Os arquivos e seus conjuntos documentais representam práticas sociais múltiplas que codificam o passado, constroem identidades e estão intrinsecamente articuladas com as memórias individuais e coletivas. Assim sendo, ao constatarmos esse duplo processo de construção da memória nos arquivos e arquivamento das memórias, podemos considerar os arquivos – recorrendo mais uma vez às análises d antropóloga argentina Ludmila Catela – como territórios de memória. Nesse sentido, arquivar a vida de indivíduos, grupos ou da “nação” significa selecionar, ordenar e acumular documentos, objetos e testemunhos que condensam memórias individuais, coletivas, institucionais e “oficiais”. Os arquivos, portanto, “alojam” a história e a memória social, cultural e política (CATELA, 2002b, p. 20).

Nessa perspectiva, os arquivos refletem (as) e são refletidos (pelas) complexas relações entre história e memória, inseridos nos embates políticos e sociais, que mobilizam distintos agentes (públicos e privados; individuais, coletivos e institucionais) na construção de novos sentidos para o passado e, em especial, para o passado autoritário da sociedade brasileira.

 

[1] Nesse contexto, além do fortalecimento dos antigos Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), existentes nos Estados, foram criados: o Serviço Nacional de Informações (SNI); o Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), ligado ao Exército; o Centro de Informações da Marinha (CENIMAR); o Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA); o Centro de Informações do Exército (CIE), entre outros.   

[2] SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÃO. “Solicitação de verba à JCR pelo MR-8”, 13 de junho de 1979; Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação (SNI) e SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÃO. “Junta de Coordenação Revolucionária”, 26 de junho de 1979. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação (SNI).

[3] SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÃO. “Junta de Coordenação Revolucionária”, 02 de maio de 1980. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação (SNI); SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÃO. “Reunião da JCR em Fortaleza”, 14 de novembro de 1980. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação (SNI); SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÃO. “Reunião da JCR em Goiânia (GO)”, 10 de fevereiro de 1981. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação (SNI); e SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÕES. “Apoio do MR-8 à JCR”, 10 de dezembro de 1980. Arquivo Nacional. Fundo Centro de Informações do Exército (CIE).    

[4] SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÃO. “Instalação de Fábrica de Armas no Brasil”, 02 de setembro de 1981. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de Informação (SNI); e CENTRO DE INFORMAÇÕES DE SEGURANÇA DA AERONÁUTICA. “Bolívia: Novo refúgio para a subversão”, 15 de março de 1984. Arquivo Nacional. Fundo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA).

 [5] O termo “arquivos sensíveis” ganhou maior visibilidade no Brasil nos anos 2000, no bojo de debates sobre a abertura dos “arquivos da repressão” e das mudanças na legislação que regulamentava o acesso a esses acervos. O termo surgiu na França uma década antes, no início dos anos 1990, também no contexto de debates sobre o acesso a documentos restritos, no caso, os que envolviam as polêmicas relações da França com seu passado durante a Segunda Guerra Mundial. (RODRIGUES, 2014, p. 68-72)

[6] Em síntese, podemos dizer que a Justiça de Transição corresponde ao conjunto de medidas políticas, sociais e judiciais que um determinado país elabora e executa, em períodos democráticos, no sentido de reparação das violações dos Direitos Humanos cometidas durante seu passado autoritário (REÁTEGUI, 2011).

 

ARQUIVOS:

BR.DFANBSB.V8.MIC.GNC.AAA.79002059      SOLICITAÇÃO DE VERBA A JUNTA DE COORDENAÇÃO REVOLUCIONARIA, JCR, PELO MOVIMENTO REVOLUCIONARIO 8 DE OUTUBRO, MR8, 13 de junho de 1979. Serviço Nacional de Informações.

 

BR.DFANBSB.V8.MIC.GNC.AAA.79001999    JUNTA DE COORDENAÇÃO REVOLUCIONARIA JCR, 26 de junho de 1979. Serviço Nacional de Informações

 

BR.DFANBSB.V8.MIC.GNC.AAA.80007403      JUNTA DE COORDENAÇÃO REVOLUCIONARIA JCR, 02 de maio de 1980. Serviço Nacional de Informações

 

BR.DFANBSB.V8.MIC.GNC.EEE.80004976     REUNIÃO DA JUNTA DE COORDENAÇÃO REVOLUCIONARIA, JCR, EM FORTALEZA CE, 14 de novembro de 1980. Serviço Nacional de Informações.

 

BR.DFANBSB.V8.MIC.GNC.AAA.81013948        REUNIÃO DA JCR EM GOIANIA GO, 10 de fevereiro de 1981. Serviço Nacional de Informações

 

BR.DFANBSB.V8.MIC.GNC.AAA.81012501         APOIO DO MR8 A JCR, 10 de dezembro de 1980. Serviço Nacional de Informações

 

BR.DFANBSB.V8.MIC.GNC.AAA.82022037    INSTALAÇÃO DE FABRICA DE ARMAS NO BRASIL JOÃO QUARTIM BARBOSA, 02 de setembro de 1981. Serviço Nacional de Informações

BR.DFANBSB.VAZ.0.0.17494     INFORME N° 222/A2/IV COMAR : BOLIVIA - NOVO REFUGIO PARA A SUBVERSÃO, 15 de março de 1989. Centro  de  Informações  da  Aeronáutica (CISA)

 BR_RJANRIO_L2_0_0_0029     DOSSIÊ SECRETO DO MINISTÉRIO DO EXÉRCITO ACERCA DE OPERAÇOES PARA DESBARATAR A GUERRILHA NA REGIÃO DO ARAGUIA, EM ESPECIAL A OPERAÇÃO PAPAGAIO, 30 de outubro de 1972. Centro de Informações da Marinha (CENIMAR)

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