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A combinação entre o acaso e a irresponsabilidade de empresas privadas e agências governamentais transformou um dia de trabalho comum no maior acidente nuclear fora de instalações nucleares já visto no mundo. Em setembro de 1987, dois catadores de lixo entraram em uma clínica abandonada e encontraram uma velha máquina. Desmontaram-na e levaram para casa parte do equipamento.

Era uma unidade de radioterapia revestida de chumbo (utilizada no combate ao câncer), que os homens abriram com a ajuda de rústicas chaves de fenda. Depois de romperem o invólucro de chumbo, perfuraram a placa de lítio que isolava as partículas radioativas do ambiente. A peça de chumbo foi vendida para um ferro-velho, e a cápsula misteriosa foi incluída na transação. Dias depois, o dono do ferro velho percebe um brilho azul emanando do cilindro, que logo se torna a atração da vizinhança. Pensando se tratar de algum material valioso, o dono do ferro velho extrai o material azul da peça, semelhante a pedrinhas brilhantes, azuis, que facilmente se reduziam a um pó semelhante a purpurina.

Foi assim que 19 gramas do radioisótopo césio-137 (material altamente radioativo) foram parar nas ruas de Goiânia, contaminando dezenas de pessoas, matando quatro delas no curto prazo _ inclusive uma menina de seis anos. Os catadores de lixo e o dono do ferro velho sobreviveram.

Acidentes envolvendo material de alta radiação, utilizados em processos de alta tecnologia ligados a fissão ou fusão nuclear, embora raros costumam ser devastadores. Este tipo de radiação tem potencial para quebrar rapidamente as ligações químicas entre os átomos que formam as moléculas, e é nesse poder que reside sua diferença primordial (em termos de perigo para nós, seres vivos) das radiações emitidas por objetos e elementos cotidianos como aparelho de celular e TVs. Material radioativo liberado diretamente no meio ambiente pode contaminar seres vivos, o ar, a água, a terra.

A utilização de energia nuclear marcou o século XX. Da produção de energia elétrica responsável por alimentar o crescimento de vários países no mundo (França e Japão, por exemplo), ao tratamento contra o câncer, passando por pesquisas científicas e aprimoramento de tecnologia agrícola, a energia nuclear é descrita, pelos seus defensores, como limpa e renovável. O seu potencial devastador, entretanto _ além do genocídio perpetrado com o uso de bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos sobre o Japão em 1945 _ gera grande desconfiança do público em relação ao seu uso. Embora raros, os acidentes com tal fonte de energia marcaram profundamente a vida das comunidades envolvidas e deixaram rastros de destruição indeléveis: Chernobyl (antiga União Soviética, 1986) e Fukushima (Japão, 2011) tendo sido os mais mortais na história recente.

Dez pessoas foram apontadas inicialmente como responsáveis pelo acidente em Goiânia, entre os proprietários da clínica, o físico responsável perante a CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear), os homens que retiraram o material radioativo do seu local de origem, além dos dirigentes de órgãos públicos responsáveis pela segurança das instalações. Cinco foram condenados, e quatro cumpriram penas. Uma das dificuldades dos processos criminais encontrava-se na legislação brasileira, que não especificava os delitos relacionados ao tipo de material roubado naquele incidente. As investigações e indiciamentos terminaram por envolver acusações de furto, lesão corporal e homicídio culposo. Em 1992, os médicos proprietários do IGR (Instituto Goiano de Radioterapia) e o físico responsável foram condenados: Carlos Figueiredo Bezerril, Criseide de Castro Dourado, Orlando Alves Teixeira e Flamarion Barbosa Goulart receberam uma sentença de 3 anos, substituída por penas restritivas de direitos. O Ministério Público recorreu, e os condenados receberam penas em regime aberto ou semi-aberto.

Apesar de ter falhado fragorosamente no episódio por, no mínimo, ter se omitido da fiscalização do edifício em que se encontravam equipamentos radiológicos, a CNEN não foi indiciada. Apesar disso, o incidente de repercussões internacionais causou certo abalo na reputação e na imagem da instituição, e mesmo a competência do Brasil em manter um programa nuclear independente foi questionada.

O incidente gerou um grande trauma entre a população de Goiânia e causou ondas de preconceito Brasil afora. Material radioativo de fácil dispersão, o césio contido na cápsula se espalhou por animais, plantas, solo e até dinheiro, embora a contaminação tenha se concentrado basicamente na quadra em que morava o dono do ferro velho. O longo intervalo de tempo decorrido entre a violação da fonte de radiação (13 de setembro) e a ciência por parte da Vigilância Sanitária, confirmação pela CNEN e o conhecimento público em 29 de setembro certamente contribuiu de forma decisiva para a dispersão do material. Quando da confirmação final pela CNEN de que o país enfrentava uma crise sem precedentes, várias pessoas já estavam hospitalizadas com a Síndrome Aguda da Radiação.  Milhares de pessoas passaram por triagens, animais domésticos contaminados foram sacrificados, casas foram destruídas. O país inteiro passou a temer qualquer coisa e pessoa que viesse da cidade, e mesmo o trágico enterro das primeiras vítimas foi marcado pelo protesto de pessoas que temiam a contaminação de todo o cemitério, apesar da utilização de urnas de chumbo.

O Arquivo Nacional possui documentação que permite compreender a cadeia de eventos que envolveu o acidente; as imagens utilizadas nesta matéria foram retiradas dos seguintes documentos:

br_dfanbsb_h4_mic_gnc_rrr_900013466_d0001de0001. MOVIMENTO ECOLÓGICO - EVOLUÇÃO DA QUESTÃO DO ACIDENTE RADIOATIVO EM GOIÂNIA/GO. Relatório confidencial, 1990. Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

br_dfanbsb_v8_mic_gnc_rrr_87011658_d0009de0015. Radioatividade em Goiânia, 9 a 23 de outubro de 1987. Serviço Nacional de Informações.

Outros documentos de interesse, que também foram usados na construção da imagem de introdução da matéria e encontram-se disponíveis nos links abaixo e também no SIAN:

br_dfanbsb_h4_mic_gnc_dit_940077492_d0001de0001

BR_DFANBSB_V8_MIC_GNC_AAA_88064921_d0001de0001

br_dfanbsb_v8_mic_gnc_aaa_88066148_d0001de0002

br_dfanbsb_v8_mic_gnc_rrr_87011658_d0005de0015

br_dfanbsb_v8_mic_gnc_rrr_87011658_d0013de0015

 

Recomendações de leitura

IEIRA, Suzane de Alencar. Césio-137, um drama recontado. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 27, n. 77, p. 217-236,    2013 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142013000100017&lng=en&nrm=iso>. access on  12  Jan.  2021.  https://doi.org/10.1590/S0103-40142013000100017.

RODRIGUES JÚNIOR, A. A. O que é irradiação? E contaminação radioativa? Vamos esclarecer. Física na Escola, v. 8, n. 2, p. 40-43, 2007.

SOARES, Carolina Chaves. IMPLICAÇÕES JURÍDICO-PENAIS DO ACIDENTE COM O CÉSIO-137.

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