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A INVENÇÃO DO BRASIL COMO TERRA DO SAMBA NA VOZ DOS SAMBISTAS

Adalberto Paranhos - professor do Instituto de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Mestre em Ciência Política pela Unicamp. Doutor em História Social pela PUC-SP, com pós-doutorado em Música na Unicamp. 

Na galeria de ícones nacionais, a invenção social do Brasil como terra do samba representa uma imagem que perdura até os dias de hoje, atravessando os tempos apesar de todos os contratempos no terreno da música popular brasileira. Denominador comum da propalada identidade cultural brasileira no segmento da música, o samba urbano teve que enfrentar um longo e acidentado percurso até deixar de ser um artefato cultural marginal e receber as honras da sua consagração como símbolo nacional. Essa história, cujo ponto de partida pode ser recuado até a virada dos séculos XIX e XX, foi toda ela permeada por idas e vindas, marchas e contramarchas, descrevendo dialeticamente uma trajetória que desconhece qualquer traçado uniforme ou linear.

          Os caminhos trilhados pelo samba – mais especificamente pelo "samba carioca" – se conectaram ao contexto mais geral do desenvolvimento industrial capitalista. Algumas mudanças fundamentais levaram o samba – mesmo sem perder contato com suas raízes negras – a incorporar outras atitudes e outros tons. Como música popular industrializada, sua expansão girou, e nem poderia ser diferente, na órbita do crescimento da indústria de entretenimento. Para tanto jogaram um papel decisivo a própria urbanização e a diversificação social experimentada pelo Brasil nas primeiras décadas do século XX.

          Interligada a essas transformações, a música popular, tornada produto comercial de consumo de massa, revelou a sua face de mercadoria. Pelo menos quatro fatores básicos convergiram no sentido de favorecer esse processo que atingiu em cheio o samba: a) originalmente, bem cultural socializado, isto é, de produção e fruição coletivas, com propósitos lúdicos e/ou religiosos, ele alcançou o estágio de produção e apropriação individualizadas, com fins comerciais; b) ancorada nos dispositivos elétricos de gravação, a indústria fonográfica, com suas bases sediadas no Rio de Janeiro, avançou tecnologicamente em larga escala e conquistou progressivamente consumidores de setores médios e de alta renda; c) o autoproclamado rádio educativo cedeu passagem, num curto lapso de tempo, ao rádio comercial, que adquiriu o status de principal plataforma de lançamento da música popular, deixando para trás os picadeiros dos circos e os palcos do teatro de revista; d) a produção e a divulgação do samba, num primeiro momento praticamente restritas às classes populares e a uma população com predominância de negros e/ou mulatos, passaram a ser igualmente assumidas por compositores e intérpretes brancos de classe média, com mais fácil acesso ao mundo do rádio e do disco.

          Não constitui novidade alguma falar sobre a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais, inclusive no caso do samba. O que me proponho aqui consiste simplesmente em destacar apenas mais um ângulo de visão do mesmo tema: num mergulho na história a partir de baixo (history from below), evidenciarei o discurso musical de compositores e intérpretes da música popular brasileira industrializada, entre o final dos anos 20 e meados dos 40 do século XX, período que cobre desde o surgimento do "samba carioca" até sua consolidação como expressão musical de brasilidade.

          Buscarei, por consequência, privilegiar os registros sonoros – a produção fonográfica – como corpo documental. Tomando como referência a audição das gravações da época, trata-se de salientar como, no campo de forças que se delineia na área da criação musical, o samba foi sendo inventado como elemento essencial da singularidade cultural brasileira por obra dos próprios sambistas. Obviamente não se deve ignorar a presença em cena de outros sujeitos sociais engajados nesse movimento de fabricação/invenção dessa tradição. No entanto, irei me concentrar no papel desempenhado pelos produtores/divulgadores do samba como protagonistas de uma história cujo enredo não foi ditado tão-somente pela ação das elites e/ou do Estado.

 

Salve o prazer: o samba como produto nacional

 

          Nos últimos anos da década de 20 do século passado, um terremoto de efeito prolongado abalou, de alto a baixo, a música popular brasileira. Seu epicentro foi o bairro de Estácio de Sá, encravado entre o Morro de São Carlos e o Mangue, nas proximidades da zona central do Rio de Janeiro. Reduto de gente pobre, com grande contingente de pretos e mulatos, vivia cercado de especial atenção por parte da polícia.

          Berço do novo samba urbano, o Estácio não teria, todavia, exclusividade no seu desenvolvimento. Quase simultaneamente, o "samba carioca", nascido na “cidade”, iria galgar as encostas dos morros e se alastrar pela periferia afora. Até impor-se como tal e, mais, como ícone nacional, uma batalha, ora estridente, ora surda, foi travada. Desligando-se da sua feição até então amaxixada, emergia um samba que, sem deixar de ser batucado, assumia uma característica de música mais marchada, como decorrência da aceleração rítmica, considerada mais apropriada para os desfiles de carnaval.

          Com o samba do Estácio ocorria, por exemplo, a valorização da(s) segunda(s) parte(s) da música e letra das composições. Em lugar da improvisação costumeira das rodas de samba de partido-alto – apoiado numa célula-mãe, o estribilho, com base no qual corriam soltos os versos improvisados – ouviam-se agora sequências preestabelecidas, com unidade temática e possibilidade de se encaixar tudo no tempo médio das gravações de 78 rpm, que girava ao redor de três minutos.

          Na corrida do samba para afirmar-se como produto nacional, era preciso saltar outros obstáculos dispostos pelo caminho. Ao enfocar aqui a área da produção musical, chamo a atenção para a necessidade do samba incorporar outros grupos e classes sociais, promovendo, assim, um deslocamento relativo de suas fronteiras raciais e sociais. Esse avanço em direção a outros territórios encontrou a sua figuração simbólica mais acabada nas relações Estácio-Vila Isabel e na parceria Ismael Silva-Noel Rosa.

          Diferentemente dos compositores de sua origem social, Noel Rosa – de extração de classe média – demonstrava um apego às coisas e às pessoas do subúrbio e do morro que, também sob esse aspecto, o transformava num tipo excepcional, cruzando e entrecruzando mundos distintos, como um autêntico “mediador cultural”. De modo mimético, ele se integrava aos “sambistas de morro”, como atestam as suas parcerias com Canuto (do Salgueiro), Cartola e Gradim (da Mangueira), Ernani Silva, o Sete (do subúrbio de Ramos), Bide e Ismael Silva (do Estácio), sem falar no exímio ritmista Puruca, em Antenor Gargalhada e outros mais. Não é por si só emblemático que o ex-estudante de Medicina e boêmio Noel Rosa tivesse justamente em Ismael Silva o parceiro com quem mais músicas compôs? Justo ele, um negro pouco afeito ao trabalho, que, imbuído do orgulho de criador artístico de respeito, vivia de biscates e trapaças de jogo.

          A vida e a obra de Noel Rosa fornecem um testemunho eloquente do movimento de transregionalização do "samba carioca". Gerado numa determinada região do Rio de Janeiro, o samba migrou, num processo dinâmico de constante recriação, para outras áreas da cidade. Ao mesmo tempo, conduzido pelas ondas do rádio, ele se deslocou para outros lugares do país, o que elevaria o "samba carioca" à condição de samba nacional.

          Esse reconhecimento está presente na linguagem musical dos sambistas. “O samba já foi proclamado/ sinfonia nacional”, enfatizavam, em 1936, por meio de Carmen Miranda, os compositores Custódio Mesquita e Mário Lago, em “Sambista da Cinelândia”. Enquanto isso, o piano de Custódio Mesquita, com sua habitual elegância, aderia, em breves passagens, à pulsação rítmica da batucada. Por sinal, em 1935, numa gravação em que música, letra e acompanhamento do conjunto regional se acham estreitamente ajustados, Carmen Miranda cantava em “Se gostares de batuque”, cuja autoria se atribui a Kid Pepe: “Oi, se gostares de um batuque/ tem batuque que é produto nacional/ sobe o morro e vai ao samba/ e lá verás que gente bamba/ está sambando no terreiro/ pois tudo aquilo é bem brasileiro”. E isso com direito, no final, a um provocativo e escrachado yeah!

 

Yes, nós temos samba: o nacionalismo musical

 

          E o samba se converteria na principal peça da artilharia musical brasileira na luta desencadeada contra as "más influências" culturais norte-americanas, que, no front da música popular, seriam encarnadas acima de tudo pelo fox-trot. Se para uns era perfeitamente aceitável que o sambista e o compositor de fox habitassem uma mesma pessoa, para outros essa dualidade era intragável. Se de ambos os lados se podiam recolher manifestações em defesa do samba como símbolo musical da identidade nacional, os usos de um ritmo de procedência estrangeira os dividiam, apesar de poderem até atuar como parceiros, como foi o caso, por exemplo, de Noel Rosa e Custódio Mesquita.

          Armado esse cenário, pode-se compreender por que, já em 1930, num samba amaxixado de Randoval Montenegro, Carmen Miranda descarregava a ira dos nacionalistas contra o fox-trot, esse intruso, e espalhava aos quatro cantos que “Eu gosto da minha terra”: “Sou brasileira, reparem/ no meu olhar, que ele diz/ e o meu sabor denuncia/ que eu sou filha deste país// Sou brasileira, tenho feitiço/ gosto do samba, nasci pra isso/ o fox-trot não se compara/ com o nosso samba, que é coisa rara”.

          Noel Rosa era um dos que compactuavam com as restrições feitas ao modismo do fox-trot. Na verdade, com frequência ele torcia o nariz diante do que lhe parecesse americanizado, da mesma maneira como achava deplorável ver brasileiros cantando em outras línguas. Sua opinião foi sintetizada, com toque de mestre, numa composição de 1933, “Não tem tradução”, na qual música e letra se integram à perfeição num só corpo, em sua investida contra aqueles que, “dando pinote”, apenas queriam “dançar o fox-trot”: “Tudo aquilo que o malandro pronuncia/ com voz macia/ é brasileiro, já passou de português/ amor, lá no morro, é amor pra chuchu/ as rimas do samba não são “I love you”/ esse negócio de “alô”, “alô, boy”/ “alô, Johnny”/ só pode ser conversa de telefone”.

          Nacionalista assumido, Assis Valente era outro que se insurgia contra o estado de coisas reinante, quando, a bordo da propagação do cinema falado, os estrangeirismos passaram a contagiar o “brasileiro falado”. Mulato de origem humilde, que dividia seu tempo entre a arte de fazer prótese dentária e a arte de compor, ele aconselhava em “Good-bye”, uma marcha de 1932: “good-bye, boy, good-bye, boy/ deixa a mania do inglês/ fica tão feio pra você/ moreno frajola/ que nunca frequentou/ as aulas da escola”.

          O panorama musical brasileiro da época era, obviamente, um campo de forças, com suas disputas e concorrências. O samba, hegemônico, não imperava sozinho, como também é óbvio. O levantamento dos gêneros musicais veiculados no mundo dos discos indicava, em segundo lugar, a gravação de marchas (aliás, era muito comum a dobradinha samba-marcha em cada lado dos discos em 78 rpm, especialmente nos meses que antecediam o carnaval). O fado, o tango e o fox-trot eram, sem dúvida, os gêneros populares estrangeiros mais em voga nos anos 30, no Brasil. A maior influência, entretanto, continuava a ser exercida pelos foxes, nacionais ou estrangeiros.

          Seja como for, Noel Rosa, Ari Barroso, João de Barro, Alberto Ribeiro e muitos outros tinham em comum traços nacionalistas, mais ou menos pronunciados, e, quaisquer que fossem as diferenças que os separassem, elegiam o samba como produto nacional. Com a marchinha Yes! Nós temos bananas...”, êxito carnavalesco de 1938 em diante, João de Barro e Alberto Ribeiro faziam uma réplica a um fox-trot que deu volta ao mundo, “Yes! We have no bananas”, de Frank Silver e Irving Cohn. Ela equivalia a um brado nacionalista de quem se sabia subdesenvolvido, sim, mas achava, ainda assim, razões para se orgulhar de seu país: “Yes! nós temos banana/ banana pra dar e vender/ banana, menina/ tem vitamina/ banana engorda e faz crescer.” E, musicalmente, quem ia para o trono no Brasil era, de fato, o samba, como cantava, em 1938, Almirante em “Touradas em Madri”, da mesma dupla que se celebrizou com suas marchas: “Eu conheci uma espanhola/ natural da Catalunha/ queria que eu tocasse castanhola/ e pegasse o touro à unha/ caramba/ caracoles/ Sou do samba/ não me amoles/ pro Brasil eu vou fugir/ isso é conversa mole/ para boi dormir”.

 

Essa gente bronzeada: o samba e a mestiçagem

 

          A escalada do samba para obter seu lugar ao sol entre os símbolos nacionais levou-o a percorrer territórios minados. Sofrendo nos primeiros tempos com as investidas policiais, que não poupavam a malandragem e a capoeiragem, achincalharam-no como “coisa de negros e de vadios”. O violão, companheiro das horas certas e incertas, foi desqualificado como “instrumento de capadócios”.

          Na realidade, o samba – no seu fazer-se e refazer-se permanente – ia incorporando outra tez e outro tom, quer dizer, outras dicções e tonalidades, imerso num processo simultâneo de relativo embranquecimento e empretecimento dos grupos e classes sociais que lidavam com ele. Sua vivência o conduzia rumo a direções opostas e complementares, tecendo a dialética da unidade dos contrários, tão bem expressa nas contraditórias trocas culturais realizadas entre as classes populares e as classes médias. Pavimentava-se o caminho para a entronização do samba como ícone cultural de toda a nação e não apenas desse ou daquele segmento étnico ou social.

          Testemunha ocular e ativo participante dessa história da nacionalização do samba, Orestes Barbosa prestava o seu depoimento em “Verde e amarelo”. Calcado em música de J. Tomás, ele revelava, em 1932, sinais de um novo tempo: “Vocês quando falam em samba/ trazem a mulata na frente/ mas há muito branco e bamba/ que no samba é renitente/ não me falem mal do samba/ pois a verdade eu revelo/ o samba não é preto/ o samba não é branco/ o samba é brasileiro/ é verde e amarelo”. Para acentuar o clima nacionalista, essa gravação é entrecortada por acordes do hino nacional. E mais: nos versos seguintes (“nesta terra de palmeiras/ onde canta o sabiá/ as almas das brasileiras/ são da flor do resedá”) há uma citação de “Canção do exílio”, do poeta romântico Gonçalves Dias. Nada aí é casual: o arremate recorda a coloração amarela da flor do resedá.

          O Brasil parecia se encher de cores, a julgar ainda pela denominação de algumas formações musicais, como o Grupo Verde e Amarelo, a Dupla Preto e Branco e a Dupla Verde e Amarelo. Tudo isso devia ser sintoma de alguma coisa. Sintoma da mestiçagem que passou a ser cantada e decantada como nunca se viu por estas terras. Sua trilogia pode ser buscada, por exemplo, na sequência das marchas compostas por um dos maiores nomes dos carnavais brasileiros, o branco Lamartine Babo, originário da classe média. Em “O teu cabelo não nega” (dele e dos Irmãos Valença), de 1931, a mulata era reverenciada. No ano seguinte ela cedia seu lugar à “Linda morena”. Em 1933, ele cantaria “Dá cá o pé... loura” (dele e de Alcir Pires Vermelho).

          Em síntese, o que se tematizava musicalmente não era senão o caráter “misto”, “multirracial” da sociedade brasileira. A miscigenação, ora execrada, ora enaltecida, permanecia no centro de debates intelectuais que punham à mostra como a questão da identidade nacional se ligava umbilicalmente à temática racial. O antropólogo Gilberto Freyre louvaria essa miscigenação como a simbiose de negros, índios e brancos com final supostamente feliz na história do Brasil, base sobre a qual se erigiu o mito da democracia racial brasileira. Tal simbiose seria retratada em mais uma marcha de Lamartine Babo, “Hino do carnaval brasileiro”, de 1939, na qual ele resume, de certa forma, suas três composições anteriores e joga com outros símbolos nacionais: “salve a morena!/ a cor morena do Brasil fagueiro/ [...] salve a loirinha!/ dos olhos verdes, cor das nossas matas/ salve a mulata!/ cor do café, a nossa grande produção”.

          Mas o leque da miscigenação na música popular já se abrira por inteiro na marcha “É do barulho” (de Assis Valente e Zequinha Reis), de 1935. Nela se encontram referências explícitas às morenas, loiras, mulatas e crioulas. E se afirma, em alto e bom som: “sou pacificador/ não quero brigar/ por causa de cor/ [...] todas elas são rainhas/ de igual valor”. O Bando da Lua interpreta essa canção harmonizando vozes da mesma maneira como idealmente se harmonizavam cores e raças no Brasil.

          Nesse contexto, afinal, “chegou a hora/ dessa gente bronzeada/ mostrar seu valor”, como reivindicou Assis Valente na esfuziante “Brasil pandeiro”, de 1941. Os ganhos advindos da nacionalização do samba não foram, porém, divididos na sua justa proporção. Os cantores brancos de classe média com certeza estavam entre os que mais tiraram proveito do fato do samba atingir a crista do sucesso. Multiplicavam-se as queixas de compositores das classes populares sobre a dificuldade de acesso às gravadoras, que acumularam lucros e mais lucros com a exploração do trabalho alheio. Criadores do nível de Bide e Marçal, de origem negra, se profissionalizaram, quer em rádios quer em gravadoras, figurando como simples acompanhantes. Eles, os bambas, relegados a pano de fundo como ritmistas... Por sua vez, os proprietários das emissoras de rádio lançaram mão até de lockout a fim de conservar no mais baixo patamar possível a remuneração dos direitos autorais. Enfim, nada de novo sob o sol. Na sociedade de classes a acumulação do capital se dá, em regra, exatamente assim.

 

Mulato filho de baiana e gente rica de Copacabana: o samba de todas as classes

 

          Mesmo com a desigualdade que imperava na hora da distribuição dos lucros gerados pela rede de negócios em volta da mercadoria samba, este, em termos gerais, se tornaria um ponto de atração e de encontro das mais diferentes classes sociais. Um Brasil, digamos, pluriclassista se reuniu e se conciliou ao redor do samba. Moda que se espraiou, sua mobilidade social abarcou amplos segmentos, como documentava Josué de Barros numa composição de 1929, o choro “Se o samba é moda”, na voz de Carmen Miranda, em seu disco de estreia: “O samba era/ original dança dos pobres/ e, no entanto, hoje/ vive nos salões mais nobres/ [...] ainda há quem diga/ que o samba não tem valor/ mas lá se encontra/ o deputado e o senador”.

          Novos cenários acolhiam o samba entre fins dos anos 20 e princípio da década de 30. E eles não passaram despercebidos a observadores atentos da cena musical, como Pixinguinha e Cícero de Almeida (Baiano). Na interpretação despojada de Patrício Teixeira, o partido-alto Samba de fato” (que era, de fato, um samba-choro), de 1932, registrava: “Samba do partido-alto/ só vai cabrocha/ que samba de fato (estribilho)// Só vai mulato filho de baiana/ e a gente rica de Copacabana/ dotô formado de ané de oro/ branca cheirosa de cabelo louro, olé”.

          Apesar de reconhecer que “no samba nego tem patente” e, mais, que no samba sem cachaça (parati) “a boca fica com um gosto mau/ de cabo velho de colher de pau”, celebrava-se o congraçamento social promovido por esse ritmo que se nacionalizava. É como se, do subúrbio à "cidade", ninguém conseguisse escapar à sua pulsação, fruindo o “Sabor do samba”, título de uma composição, de 1935, assinada por Kid Pepe e Germano Augusto: “Peço licença pra dizer/ que hoje em dia/ o samba lá no morro/ também tem sua valia/ eu fui a um samba/ na alta sociedade/ vendo sambista de smoking/ Eu me senti à vontade”.

          Se, nesses exemplos de conciliação social via samba, os sambistas comemoravam, em última análise, o reconhecimento por outras camadas sociais da importância da sua criação, houve casos, no campo da produção musical, em que se procurou deliberadamente, de forma programática, a harmonização das classes sociais. Tal se deu com o compositor e regente da área erudita Heitor Villa-Lobos empenhado em puxar o coro da unidade nacional. Na sua visão, afinada com o nacionalismo estado-novista, a música deveria servir como uma alavanca para a integração social e política sob a batuta estatal e como instrumento de exaltação da disciplina e do civismo, em meio ao combate sem tréguas à luta de classes com o objetivo de impedir o avanço da “barbárie comunista”.

          Enquanto isso, sem maiores preocupações com os problemas políticos conjunturais, os sambistas iam, na prática, ao som da batucada, aproximando as classes sociais. Até no plano estritamente sonoro tal fato podia ser percebido, por exemplo, nos rearranjos feitos, no decorrer do tempo, na composição da família instrumental do samba. Ao se referir ao conjunto Gente do Morro – um grupo cujas gravações vão de 1930 a 1934 e cujo nome, a julgar pela procedência de seus componentes fixos, era mais uma espécie de fachada comercial –, o pesquisador José Ramos Tinhorão chama a atenção para a simbiose musical que ele representava:

 

o que o conjunto Gente do Morro fazia – e isso era de fato novidade – era realizar a fusão dos velhos grupos de choro à base de flauta, violão e cavaquinho com a percussão dos sambas populares herdeiros dos improvisos das rodas de batucada, com base em estribilhos marcados por palmas. Sob o nome logo popularizado de conjunto regional, o que tais grupos vinham a realizar (o próprio líder do Gente do Morro à frente, com seu depois famoso Conjunto de Benedito Lacerda) era o casamento da tradição do choro da pequena classe média com o samba das classes baixas.[i]

 

          A adesão da classe média ao samba, sob o impacto de sua recriação incessante, contou com exemplos notáveis. Sem falar novamente de Noel Rosa, podem ser lembrados os bacharéis em Direito Ari Barroso e Mário Lago, o médico homeopata Alberto Ribeiro, além de Custódio Mesquita, moço de "boa família", regente diplomado pela Escola Nacional de Música, e muitos outros mais. No nível estilístico, uma evidência a mais se corporificou na aparição, em 1928, de um gênero ou subgênero musical – o samba-canção – que buscava maior apuro melódico e que teria como marco “Ai, ioiô”, de Henrique Vogeler. Lançada com sucesso a partir de 1929, sob quatro títulos diferentes e, na falta de uma, ostentando três letras, sua versão definitiva – com o título de “Iaiá” – surgiria em março desse ano, com uma dicção interpretativa um tanto quanto operística de Araci Cortes, escorada por um acompanhamento da Orquestra Parlophon com acento amaxixado.

          O samba-canção – estilo particularmente adequado ao período de entrecarnavais, e que fazia parte do conjunto das então denominadas músicas de meio de ano – de início deslancharia junto a compositores que sabiam ler música (como Ari Barroso e Custódio Mesquita), alguns inclusive com formação erudita. Posteriormente, num movimento de sentido contrário ao do samba, stricto sensu, ele expandiria seu alcance em direção às classes populares. Historicamente, Cartola e Nelson Cavaquinho são exemplos marcantes desses intercâmbios culturais, testemunhados por Roberto Martins e Waldemar Silva em “Favela”, de 1936, ao cantarem a “favela dos sonhos de amor/ e do samba-canção”.

          As relações entretidas entre a classe média e a "gente do povo" estão flagradas em diversas canções. Não foram Vadico e Noel Rosa, dois compositores provenientes das camadas médias da sociedade, que, em “Feitiço da Vila”, afirmavam, em 1934, que “lá em Vila Isabel/ quem é bacharel/ não tem medo de bamba”? Três anos depois, com sua veia satírica saltada, Assis Valente produziria mais uma de suas brilhantes crônicas/críticas musicais de costumes. Na berlinda, um acontecimento que se integrara à vida cotidiana: a escapada de doutores de classe média, fantasiados de malandros, que se entregavam ao reinado da folia nos dias de carnaval. “Camisa listada”, a despeito da rejeição que sofreu da parte de diretores de gravadoras, acabou sendo registrada em disco por Carmen Miranda ante a insistência de Assis Valente e obteria enorme sucesso. Mais ainda: com esse samba-choro se perpetuou uma das mais memoráveis interpretações da "pequena notável", encarnando, aí, a graça em pessoa:

 

Vestiu uma camisa listada e saiu por aí/ em vez de tomar chá com torrada/ ele bebeu parati/ levava o canivete no cinto/ e um pandeiro na mão/ e sorria quando o povo dizia/ sossega leão, sossega leão// Tirou o anel de doutor/ para não dar o que falar/ e saiu dizendo/ eu quero mamar/ mamãe, eu quero mamar.

 

          Esse estado de coisas só jogava a favor da nacionalização do samba, na medida em que apagava as linhas demarcatórias que pudessem subsistir, dificultando o seu livre tráfego pela sociedade. E sem isso dificilmente o samba exibiria suas credenciais de "coisa nossa". Afinal, como frisa Hermano Vianna, múltiplos sujeitos sociais interviriam nesse processo, dentre os quais “negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos, folcloristas, compositores eruditos, franceses, milionários, poetas”. Vem daí que “o samba não se transformou em música nacional através dos esforços de um grupo social ou étnico específico, atuando dentro de um território específico”. Do mesmo modo, complementa esse antropólogo, “nunca existiu um samba pronto, ‘autêntico’, depois transformado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado concomitantemente à sua nacionalização”.[ii]

          Nada disso, porém, significa que houvesse se evaporado, como que por efeito de um passe de mágica, todo e qualquer ressentimento de classe ou a percepção da discriminação social/racial. As contradições inerentes a uma sociedade assentada nas desigualdades compunham, evidentemente, o dia a dia dos sambistas. E Assis Valente, por exemplo, não engolia aquilo que afetava, em especial, as pessoas simples. Em “Isso não se atura”, de 1935, depois de, sintomaticamente, atirar farpas visando ao pessoal do Café Nice, ele atacava a questão da desigualdade social ou do tratamento diferenciado dispensado pela polícia. Determinados comportamentos dos sambistas populares, “a polícia não consente/ aparece o tintureiro [carro de polícia, camburão]/ e seu guarda leva a gente”, denunciava o autor. Por outro lado, completava, “eu já fui numa macumba/ que no fim o pau comeu/ mas foi entre gente fina/ e a polícia não prendeu”.

Apesar da nacionalização do samba em marcha, ainda se guardava, nos setores populares, certa distância dos “penetras” de outras classes. Vestígios disso são captados também em “Você nasceu pra ser grã-fina”. Nessa composição Laurindo de Almeida zomba de uma madame que teimava em aprender samba, sem voz, sem ritmo, nem nada que a credenciasse a tanto: “se compenetre/ que o samba é alta bossa/ e é pra nego de choça/ que não fala o inglês”. Na mesma linha, na outra face desse disco de 1939, o mesmo autor retratava um “Mulato antimetropolitano” “que não gosta da cidade”, “dispensa o cinema/ e neres [nada] de fox-trot/ é do samba-canção/ [...] e hoje ele vive no morro/ onde há samba pra cachorro/ e o povo é mais igual”.

Embora esses exemplos permitam entrever que o discurso musical dos sambistas não atingira um grau de uniformidade plena, não há como descartar que o tom preponderante apontava para uma relativa comunhão de classes em torno do samba. Quanto a isso, convém reafirmar algo crucial. O samba, ao extrapolar os territórios e os grupos sociais de onde se originou, era motivo de orgulho para os sambistas. Numa palavra, ele atuava como fator de afirmação e de identificação sociocultural de grupos e classes sociais normalmente marginalizados na esfera da circulação dos bens simbólicos. Eles assistiam, com justa satisfação, à transformação da obra brotada do seu talento em símbolo de brasilidade.

Custódio Mesquita soube interpretar como poucos esse sentimento que tomava conta dos construtores do samba em geral, aqui incluída a parcela das classes médias que ele próprio exprimia. Sua canção “Doutor em samba”, de 1933, é por si só eloquente, não fora, de quebra, a performance do mestre do canto-falado, Mário Reis, bem como a inventividade da participação dos Diabos do Céu no acompanhamento: “Sou doutor em samba/ quero ter o meu anel/ tenho esse direito/ como qualquer bacharel/ vou cantar a vida inteira/ para meu samba vencer/ é a causa brasileira/ que eu quero defender// Só o samba me interessa/ e me traz animação/ quero o meu anel depressa/ pra seguir a profissão”.

O protético Assis Valente, outro doutor não doutor, manifestava igualmente o sentimento de superioridade dos sambistas na arte de criar música popular. Os termos eram praticamente equivalentes. No clássico “Minha embaixada chegou”, de 1934, ele recordava que “não tem doutores na favela/ mas na favela tem doutores/ o professor se chama bamba/ medicina na macumba/ cirurgia lá é samba”.

Paralelamente, no próprio solo do samba despontariam mediadores políticos e culturais, entre os quais Paulo da Portela talvez fosse o mais emblemático. Homem muito chegado à imprensa, constantemente em contato com as autoridades, cumpriu a função de aproximar grupos e classes sociais distintos, contribuindo, à sua maneira, para a maior aceitação do samba. Como ressalta o pesquisador Sérgio Cabral, “a sua luta consistia em tirar as escolas [de samba] da marginalidade e que não fossem mais olhadas como antro de malandros e desordeiros”.[iii] Nesse particular certamente se descortinava um vasto campo de entendimento entre o mundo do samba e o grand-monde. E o Estado brasileiro não tinha por que não aplaudir iniciativas do gênero.

Do mesmo modo, soavam, em mais de um sentido, como música, aos ouvidos das classes dominantes e dos governantes, palavras como as do ex-capoeirista Heitor dos Prazeresem favor da regeneração do malandro. É “doloroso”, “vergonhoso”, “não é negócio ser malandro”, pregava ele em “Vou ver se posso”, enquanto expressava a confiança de que, com trabalho, tudo mudaria. Como quem se demite da malandragem, anunciava em 1934: “eu vou deixar esta vida de vadio/ ser malandro hoje é malhar em ferro frio”. E ainda estávamos um tanto quanto distantes da cruzada antimalandragem patrocinada pelo "Estado Novo", quando, em nome da unidade nacional, todos foram convocados a engrossar as fileiras do exército da produção em prol do "progresso nacional". Nem tudo, porém, aconteceria ao sabor dos desejos dos governantes ou dos defensores da ditadura estado-novista. Mas esta é outra história, que fica para outra vez, pois ela nos remete às vozes destoantes que a ideologia oficial e a censura não lograram silenciar por completo.[iv]

De toda maneira, acima das disputas, pairando sobre as suas diferentes pronúncias, o samba seguia sua(s) trilha(s), consolidado como símbolo da nacionalidade. Expressão cultural plural, era glorificado como portador da nossa singularidade musical, encarado como algo tão natural, tão entranhadamente brasileiro, que, em 1940, Dorival Caymmi, proclamava em “Samba da minha terra": “quem não gosta de samba/ bom sujeito não é/ é ruim da cabeça/ ou doente do pé”.

Nota do site: O Arquivo Nacional possui vários fundos e coleções ricos em documentação e registros dos mais de cem anos de história do samba. Dos discos em vinil da coleção de Humberto Franchesi às fotografias e reportagens do Correio da Manhã, passando pelas partituras da Mayrink Veiga e dos registros sonoros presentes em todos estes (e outros) fundos, a riqueza do material (em grande parte ainda não-digitalizado) é um convite ao pesquisador e aos apaixonados pela música brasileira.

Lista de documentos:

BR_RJANRIO_4Q_0_MAP_0287. Planta mostrando a linha de carris de ferro da tijuca na rua do mangue e sua junção com a estrada do engenho velho e até mata-porcos (antiga Estácio). [1899]. Ministério  da  Indústria,  Viação  e  Obras  Públicas.

BR_RJANRIO_HG_0_0_0061. A Viola está maguada (Catullo) samba- Bahiano, Julia e o Grupo da Casa Edison; Nº 120521 Cabocla de Caxangá (Catullo) Batuque sertanejo - Bahiano, Julia e o Grupo da Casa Edison. 1913. Casa Edison.

BR_RJANRIO_ML_0_DPE_TXT_0002_0079. Álbum de recortes de revistas e jornais com poemas, divulgação de shows musicais, frases, crônicas, críticas, comentários, entrevistas jornalísticas; libreto da peça “Flores à Cunha” e folhetos de divulgação das peças “A grande Estréia”, “Sambista da Cinelandia”, “Figa de Guiné”, “Mamãe eu quero”, “Rumo ao Cattete”, todas de autoria de Mário Lago e parceiros. 1927. Mário Lago.

BR_RJANRIO_J5_0_RTS_0082. Boa noite (Good night) - Fox do filme \"Uma noite no Rio\" - Música de Harry Warren e letra de Mack Gordon. 1941. Discoteca do Arquivo Nacional.

BR RJANRIO W3.0.DSO, RCA.165. Fox canção de Custódio Mesquita. Intérprete: Sílvio Caldas. s.d. Humberto  Moraes  Franceschi

BR RJANRIO.SG.CX33.001236. Partitura de Aquarela Brasileira (logo renomeada Aquarela do Brasil), de Ari Barroso. Rádio Mayrink Veiga. 

 

 Comemoração da Hora da Independência no campo do Vasco da Gama, com a presença do presidente Getúlio Dornelles Vargas, Estádio São Januário, Rio de Janeiro, com a presença de Heitor Villa-Lobos, maestro. 1944. Agência Nacional.

W3_10_0407_02. Disco com gravação de Conversa de Botequim, de Vadico e Noel Rosa. s.d. Humberto  Moraes  Franceschi.

BR_RJANRIO_EH_0_FOT_EVE_08077. Flagrantes colhidos durante o desfile das escolas de samba em homenagem à Darci Sarmento Vargas e em benefício da Cantina do Combatente no estádio do Vasco da Gama. 1943. Agência Nacional.

BR_RJANRIO_OC_ABR_3394. Ficha de identificação profissional de Heitor dos Prazeres. Delegacia de Costumes e Diversões do Rio de Janeiro.

Notas:

[i] TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, p. 296.

[ii] VIANNA, Hermano. O mistério do samba. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Editora UFRJ, 1995, p. 151.

[iii] CABRAL, Sergio.  Falando de samba e de bambas. In: História da música popular brasileira. Fascículo Bide, Marçal e Paulo da Portela. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 2.

[iv] Ver PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios/ CNPq/Fapemig, 2015.

BIBLIOGRAFIA

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