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MERCOSUL _ O Brasil na América do Sul

Viviane Gouvêa

Mestre em Ciência Política (UFRJ)

Pesquisadora do Arquivo Nacional

Em 26 de março de 1991 os Presidentes Fernando Collor (Brasil), Carlos Menem (Argentina), Luis Lacalle (Uruguai) e Andrés Rodríguez (Paraguai) assinam o Tratado de Assunção em um momento histórico para todas as nações envolvidas e também para a comunidade internacional. O Tratado concretizou o nascimento do Mercosul, o Mercado Comum do Sul, bloco regional que reuniu inicialmente os países citados mas que nas décadas seguintes agregou, de uma forma ou de outra, a maioria dos Estados da América do Sul – o Tratado de Assunção está aberto à adesão de outros Estados-membros da ALADI (Associação Latino-Americana de Integração). A Venezuela chegou a se incorporar ao grupo de membros plenos, tendo sua integração consolidada em 2012, mas acabou suspensa em 2016 por razões políticas e técnicas. Atualmente são membros associados: Bolívia (1996), Chile (1996), Peru (2003), Colômbia (2004), Equador (2004), Guiana (2013) e Suriname (2013).

A criação do Mercosul resultou de um processo de negociação em torno de temas e objetivos comerciais e econômicos que, como no caso da União Europeia (que inspirou a experiência sul-americana), acabou por dissolver tensões históricas entre nações que outrora disputaram mercados e territórios a sangue e fogo. Atualmente o bloco engloba uma atuação que vai muito além da implantação das TECs (Tarifa Externa Comum) e de uma União Aduaneira, incorporando mercado de trabalho, produção e distribuição de energia, direitos políticos e democracia, cidadania, direitos humanos, transportes, segurança, combate ao terrorismo e crime organizado.

Uma inserção competitiva no mercado internacional, o aumento do poder de barganha diante de outros países e mesmo corporações e o crescimento econômico dos países do bloco estiveram no horizonte do Mercosul desde a sua criação, fruto de um contexto internacional de arrefecimento (e depois, fim) da guerra fria, aceleração do processo de globalização e da sua contrapartida, a regionalização (criação de blocos regionais) e domínio de políticas neoliberais de flexibilização e desregulamentação dos mercados e economias nacionais. No entanto, as prioridades e projetos realizados no âmbito do Mercosul também modificaram-se ao longo do tempo em função de novas condições internacionais e intranacionais, e o bloco acabou por se mostrar bem mais flexível e resistente do que suas fontes de inspiração originais e dos que seus detratores poderiam prever.

  

1.

A ideia de uma união entre países não é novidade no continente americano, tendo sido sonhada e pensada por estadistas ao longo dos anos em que os novos Estados, recém-libertos do jugo europeu, começaram a se formar nas primeiras décadas do século XIX. Embora surgido em contexto regional e internacional diverso do final do século XX, quando o bloco se materializou, o panamericanismo de Simon Bolívar de uma certa forma ajudou a manter no imaginário dos povos locais a possibilidade de uma união ou pelo menos, uma concertação de Estados em nome da defesa mútua diante de adversários mais poderosos.

No final do século XIX algumas iniciativas demonstram que o interesse por algum tipo de cooperação mantinha-se vivo, e ao longo dos cem anos seguintes tais iniciativas apresentarão objetivos diversos, enfatizando ora objetivos comerciais, ora políticos. Algumas vezes salientou a importância de um fortalecimento mútuo dos países mais pobres diante dos Estados Unidos, a grande potência, e em outros momentos algumas propostas abrirão a possibilidade de integrar mercados até mesmo com o poderoso vizinho do norte.

Durante o século das guerras extremas – o século XX – a comunidade das nações passou a se articular em fóruns multilaterais com motivações e objetivos variados: busca de maior peso geopolítico, proteção e negociações de mercados, discussão de interesses em comum são apenas alguns exemplos. O pragmatismo passa a orientar a concertação regional que se expressa em movimentos de aproximação e colaboração entre Estados visando a concretização de objetivos comuns. A Ia Conferência Internacional Americana realizada em Washington entre outubro de 1889 e abril de 1890 seria o embrião da Organização dos Estados Americanos (OEA): embora a ideia de uma integração comercial e aduaneira tenha sido logo descartada no âmbito da organização, ela funcionou como palco para negociações no âmbito comercial e o aprofundamento de afinidades entre Estados que viriam a se materializar em propostas de blocos comerciais regionais.

Durante a primeira metade do século XX os países latino-americanos de uma forma geral encaravam tratados regionais sobre padronização ou união aduaneira com desconfiança e ceticismo, acreditando que não havia suficiente consistência e constância nas políticas externas dos seus países para que tais propostas de integração obtivessem sucesso. Após a Segunda Guerra este posicionamento vai se modificar, em função tanto do exemplo europeu como das dificuldades em comum enfrentadas pelos países latino-americanos em seu processo de desenvolvimento e na sua inserção em uma ordem mundial dominada por duas superpotências antagônicas, em um cenário que privilegiava investimentos da grande potência capitalista (EUA) na recuperação da Europa e em países sob risco de cair sob domínio do comunismo (o que não foi o caso da América do Sul na década de 1950).

Nos anos 1950 as dificuldades em comum ensejaram uma aproximação entre estes Estados, e nesse sentido o papel da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), criada em 1948 no âmbito da Organização das Nações Unidas, mostrou-se fundamental como local de estudos e elaboração de propostas de desenvolvimento para a região e o enfrentamento de problemas comuns. Nos anos seguintes algumas iniciativas como o Mercado Comum Centro-Americano (1960), o Pacto Andino (1969), a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC, 1960) substituída pela Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração (ALADI, 1980) surgiram, com maior ou menor grau de sucesso.

Uma forte inspiração política para o desenvolvimento de blocos regionais veio da Europa, que logo após o final da Segunda Guerra também passou a se articular nesse sentido, em uma tentativa de evitar novos conflitos decorrentes de disputas de mercado e também de trabalhar em conjunto na recuperação do continente, destruído pelo conflito. Em 1951 foi criada a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, dois anos depois da criação do Conselho da Europa, embriões de tratados de cooperação política e econômica que dariam existência à União Europeia. Em 1957 os Tratados de Roma instituem a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia da Energia Atômica (Euratom), e no ano seguinte o Parlamento Europeu inicia suas atividades. Nas décadas seguintes, tratados diversos incluíram novos países e ampliaram o escopo de cooperação, processo que teve sua consolidação na instituição da União Europeia em 1992 e do mercado e moeda únicos em 2000.

 

2.

Brasil e Argentina sempre estiveram a frente da elaboração de projetos de integração regional que desembocaram na criação do Mercosul. A partir da Declaração de Iguaçu, assinada em 1985 pelos dois países que acabavam de sair de ditaduras militares, o processo de cooperação entre Brasil e Argentina e, posteriormente, de integração regional do Cone Sul ganharia força. A Declaração do Iguaçu formaliza a decisão política dos dois governos de debater e agir de forma coordenada temas de interesse comum (comércio, energia, transporte, telecomunicações), questões regionais (sistema interamericano, Bacia do Prata, processo de redemocratização da região) e internacionais (dívida externa, protecionismo comercial, combate ao narcotráfico).

Contudo, alguns antecedentes permitiram e apontaram para uma aproximação:

  1. Convênio de Amizade e Consulta, assinado por Jânio Quadros e Arturo Frondizi em Uruguaiana (abril de 1961), cujas diretrizes não chegaram a ser implementadas em função de golpes e ditaduras militares que desestruturaram ambos os países nos anos seguintes;
  2. O Acordo Tripartite Itaipu-Corpus, de 1979, assinado por Brasil, Argentina e Paraguai, visando o aproveitamento hidrelétrico do rio Paraná;
  3. Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento e a Aplicação dos Usos Pacíficos da Energia Nuclear, de 1980.

Até a assinatura do Tratado de Assunção o comprometimento dos dois países se ampliou para Paraguai e Uruguai.

A década de 1980 foi marcada pelo início do fim da guerra fria e do bloco comunista europeu, e na América Latina, por processos de redemocratização que vieram acompanhados de uma crise econômica profunda. Baixos investimentos, hiperinflação, indicadores sociais pífios, impressionante dívida externa, recuo da produção e da participação no comércio internacional transformaram aquela década na “década perdida,” pelo menos em termos econômicos. O processo de globalização e consequente desregulamentação (de normas de trabalho, comércio e produção) intensifica-se, e a cooperação regional consolidou-se como uma das formas de inserção internacional com capacidade para potencializar forças e minimizar vulnerabilidades. Negociando Tarifas Alfandegárias Comuns e aproximando-se de uma União Aduaneira (ainda que imperfeita), os países da América Latina que buscaram o caminho dos blocos regionais tentavam fazer frente a concorrência das grandes potências (com o aumento do seu poder de barganha) e viabilizar políticas de desenvolvimento que os permitissem sair da crise e retomar o crescimento econômico.

O Tratado de Assunção propunha a concertação em várias áreas:

  1. políticas macroeconômicas;
  2. investimentos setoriais (complementação de setores econômicos diferentes);
  3. ambientais (preservação do meio ambiente, dado que vários ecossistemas são partilhados pelos diferentes Estados);
  4. recursos energéticos;
  5. integração física (rede de transportes).

Em 1995 o processo de adoção das TECs (que padroniza a tributação sobre produtos importados de países de fora do bloco) teve início mas, assim como a criação da União Aduaneira (no caso de união efetiva e ampla, resulta na ausência de restrições de comércio entre as nações do bloco), jamais se consolidou integralmente, dadas as enormes diferenças entra os parques produtivos e o setor comercial das diferentes nações. Apesar disso, os acordos alcançados fazem do Mercosul um bloco robusto que representa atualmente a quinta economia do mundo.

  

3.

Embora a ideia original de coordenação e cooperação interindustrial (em um sentido amplo, de parques produtivos de diversos setores) tenha sido deixada de lado ainda nos anos 1990, abrindo caminho para a preponderância do modelo de integração aberta (inserção competitiva nos fluxos globais de comércio) consoante as ideias do neoliberalismo da época, o Mercosul não se restringiu às discussões meramente comerciais, passando a integrar temas bastante amplos. Com o passar dos anos, a agenda do Mercosul passou a incluir democracia (Protocolo de Ushuaia, de compromisso com a democracia e que torna vinculante o respeito às normas democráticas), direito de trabalho e residência (os cidadãos dos países signatários possuem facilidade de fixar residência em toda a área do tratado, além de não precisarem de passaporte e contarem com suporte da previdência social correspondente), cidadania e bem estar, processo que foi acompanhado por uma evolução institucional correspondente expressa na criação de várias instâncias e organismos: Plano Estratégico de Ação Social (PEAS), o Fundo para a Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM), o Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL e do Centro MERCOSUL de Promoção do Estado de Direito (CPMED), o Instituto Social do MERCOSUL, o Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPDH), a Unidade de Apoio à Participação Social, Parlamento do Mercosul (Parlasul), entre outros.

As disparidades sociais e econômicas entre os países vêm sendo enfrentados desde o início com políticas que visam a diminuição de tais diferenças _ respeitando-se limites legais, culturais e estruturais na marcação do horizonte de tais mudanças _, incluindo investimentos por parte dos países em melhor situação econômica e o estabelecimento de exceções nas tabelas tarifárias, de forma a não prejudicar setores chave do sistema produtivo local. Apesar das iniciativas, há diferenças e desníveis que não podem ser equacionados no contexto do bloco.

A crise enfrentada pelo Brasil e pela Argentina no final da década de 1990 e a resistência dos Estados Unidos da América, que durante anos tentou impor seu próprio projeto de integração continental –a ALCA  (Área de Livre Comércio das Américas)  em especial entre 1994 e até a primeira década do século atual foram alguns dos maiores desafios enfrentados pelo Mercosul.

A perspectiva multidimensional do bloco foi acentuada no início do século XXI, com a ascensão de governos populares na região, quando temas sociais e a defesa da democracia consolidaram-se como centrais para o bloco. Apesar do desgaste desta agenda com a ascensão de governos de direita e extrema-direita nos últimos anos, e a tentativa mesmo de desmonte do bloco, este mostrou sua resiliência e flexibilidade diante de crises e de contextos desfavoráveis: de certa forma, mesmo o seu baixo grau de institucionalização deliberativa tenha contribuído para que, mantando-se em nível mínimo, o Mercosul tenha adquirido uma estabilidade que o mantém como balizador fundamental para o comércio da América do Sul e desta com o mundo. Apesar desta resistência, os ataques sofridos pela arquitetura institucional e normativa do bloco nos últimos anos vêm minando a capacidade de articulação dos países em nome de negociações individuais diante do comércio internacional que dificilmente atendem aos interesses dos povos da região. Faz-se necessário resgatar os princípios originais do Mercosul: se não o de criação de um único mercado consolidado (um Cone Sul, ou uma América do Sul sem fronteiras), pelo menos o de fortalecimento de um bloco coeso de negociação e barganha em um cenário internacional instável e profundamente predatório.

Documentos inseridos em links ou como imagem:

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.2613: Mercosul: processo de ampliação. 19 de setembro de 1996.

BR RJANRIO HA.0.DSO, PNB.100: Chamada Programa 100: Os fracassos que levam Collor a tentar novamente o entendimento nacional; Países da América do Sul também querem criar o seu mercado comum; O governo que está desativando os leitos nos hospitais públicos; E o “Notícias do Brasil” completa a sua centésima edição. 1991.

BR RJANRIO CNV.0.CSO.00092001061201254: Convite encaminhado para participação da IV Reunião Extraordinária de Altas Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do MERCOSUL e Estado Associados (RAADH). Anexo ao documento segue o cronograma de atividades. 21/11/2012

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.740: Condições adicionais indispensáveis para a viabilização do Mercosul. 25 de setembro de 1991.

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.1815: Integração dos Serviços de Inteligência na área do MERCOSUL, visando ao acompanhamento do Terrorismo e do Narcotráfico. 04 de novembro de 1993.

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.1242: Consequências do Mercosul para a economia brasileira. 14 de maio de 1992.

BR RJANRIO EH.0.FOT, PRP.8156: Presidente João Belchior Marques Goulart (1962-1963) no Exterior: visita a Organização dos Estados Americanos (OEA), Washington, Estados Unidos, 7/4/1962

BR RJANRIO RR.0.PES, PUB.1: Publicação “Uma mensagem a Garcia” e “O sistema interamericano”; aulas inaugurais, fascículo do periódico “Archives du Musée Teyler”; anais da Academia Brasileira de Ciências; programa da Conferência das Classes Produtoras. [1941-1948]

BR RJANRIO Q0.ADM, COR.A953.2: Cartas e circulares da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, tratando da participação no 5º Período das Sessões da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL) e apresentando relatório; solicitando apoio para a retirada da emenda que restringe a carreira diplomática às mulheres. 1953.

BR DFANBSB N8.0.PSN, EST.145: OEA. Pacto Andino. Posição do Brasil.  1973-1981.

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.1244: Papel desempenhado pelo Brasil no processo de integração da América Latina. 14 de maio de 1992.

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.47: Argentina e Brasil: programa nuclear – avaliação e cooperação. Declaração de Iguaçu. 04 de julho, 1990.

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.1713: Proposta alternativa de traçado da Rodovia do Mercosul. 03 de setembro de 1993.

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.1325: Restrições dos EUA ao Mercosul no âmbito do GATT

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.1251: Economia internacional, Mercosul: situação e perspectivas. Declaração da Ecosul. Junho de 1992.

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.3360: Considerações acerca do Mercosul. 28 de maio de 1999.

BR DFANBSB H4.TXT.CEX.2767: ALCA: Conflito de interesses e aspectos de criação. 24 de março de 1997.

 

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